Vida de Chocolate

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Eu era o mais novo de uma ninhada de quinze filhotes. Não tenho nenhuma lembrança clara de minha mãe, mas ouvi meus irmãos dizerem que era uma gata muito bonita, com pelos amarelados e olhos azuis.

Diferente dos outros, que tinham pelos claros, eu era em um tom de marrom escuro; o que sempre foi um benefício, já que fazia meus olhos amarelos chamarem a atenção. Porém, enquanto meus irmãos aos poucos iam sendo adotados, eu continuava ficando.

No final de uma sexta-feira de adoção, mais dois irmãos meus tinham sido adotados, sobrando apenas eu e mais três. Enquanto eu tentava me distrair com um brinquedo, ouvi o som da porta se abrir e logo depois uma criança falando alto e rápido demais. Caminhei até a grade da minha jaula para entender o que estava acontecendo. Uma garotinha arrastava seu pai pela mão, ela saltitava e olhava cada compartimento de animais, sempre ressaltando alguma qualidade e dizendo o quanto era fofo.

Ela caminhou até a cela onde eu e meus irmãos estavam e pressionou o rosto contra a grade, me permitindo olhar ela mais de perto. Seu cabelo era castanho claro, quase louro; os olhinhos brilhavam em um tom entre o verde e o marrom; e sua pele negra era quase da mesma cor que meus pelos.

- Eu quelo o chocolate, papai. Quelo o chocolate - disse sorridente demais para uma criança sem os dois dentes da frente.

Tentei pensar no que aquela menina poderia estar falando, o que poderia ser chocolate? A garotinha cochichou no ouvido do rapaz que nos alimentava e apontou para minha jaula. Sem demora ele abriu a grade e me puxou para o lado de fora, me entregando nas mãos da pequenina.

- Chocolate - ela falou acariciando meu pelo, fazendo com que eu ronronasse.

Ela riu e eu dei um ultimo miado para meus irmãos. Eu sabia que logo não lembraria seus rostos, afinal eu era um gato, e vidas que seguem.

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Aprendi bastante coisa que nos primeiros dias com minha nova família. A primeira era que eu tinha um nome completo, Chocolate Com Amendoim. A segunda era que meu nome derivava de um doce, que era uma delicia. A terceira era que minha dona se chamava Melissa. A quarta era que os pais de Melissa achavam que gatos não eram tão amorosos quanto cães, o que parecia ser verdade. A quinta era que eu não deveria, em hipótese alguma, roer moveis ou escalar a cortina, castigos nunca são coisas agradáveis.

Fora alguns deslizes meus, tudo corria muito bem. Melissa amava prender coisas no meu pelo e me carregava para todo o lado, isso sem se importar com a quantidade de pelos que eu soltava. E por mais que eu não gostasse muito de parecer uma da boneca, a ração+ era um beneficio que eu não poderia descartar.

Depois de um mês, o quarto de minha dona estava com as paredes cheias de prateleiras para que eu escalasse; dando-me acesso ao lugar que se tornou um dos meus favoritos, a parte de cima do guarda-roupa.

Melissa começou a estudar e eu a dar voltas pela vizinhança até chegar, por volta do meio-dia.

Algo que descobri, contrariando a opinião dos pais de minha dona e a minha, era que se existia algo que descrevesse o que sentia por Melissa isso era amor. E que eu sempre estaria ao lado da minha menina, para o que ela precisasse.

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Como tudo que é bom acaba, a infância de Mel acabou e a adolescência começou. Aquela sim foi uma fase difícil.

Melissa se apaixonou mais vezes do que eu fui ao veterinário em todos os meus sete anos de vida, e foram muitas. O pior era que nenhum era lá essas coisas, a maioria tinha o cabelo lotado de gel ou a cara cheia de espinhas, uma coisa que nunca entendi era o gosto dessa menina. E junto com as paixões, vieram as decepções; mas nada como uma seção de filmes, algumas barras de chocolate e o gato Chocolate para deixa-la pronta para outra, literalmente.

Junto com isso, surgiram as crises de insegurança. "Meu cabelo é ridículo", ela falava na frente do espelho. "Eu odeio o meu corpo, eu pareço um palito ambulante", reclamava para a mãe. Eu só podia miar o quanto eu a achava linda, admirava seus cachos armados e não via nada de errado com seu corpo; mesmo que tecnicamente ela não me entendesse.

Com o tempo isso foi passando, ela pareceu ouvir meus conselhos e deixar de ligar para as amigas que tentavam deixá-la para baixo. Mas quando completou dezessete anos a pergunta "O que vou ser quando crescer" ganhou peso. Os pais de Mel, de forma até inconsciente, começaram a cobrar demais da filha, deixando-a sobrecarregada. Aos poucos os livros didáticos assumiram todos os espaços possíveis do quarto da moça; e embora parecesse cansada não desanimava.

🐱

Eu tinha acabado de completar meus dezesseis anos humanos, mais ou menos oitenta e um anos de gato. Eu encarava a algum tempo o novo quadro de Mel, não era uma paisagem como os outros, nem uma foto de família. Nele havia algo escrito com letras elegantes e alguns desenhos ornavam as bordas. Ouvi dizer que era um diploma, algo que significava muito para Mel e eu fiquei feliz por ela.

Naquele dia, ela estava sentada sobre a cama, seus cabelos presos em um coque e os fones de ouvido isolavam-na do resto do mundo. Caminhei lentamente até a cama e pulei para subir. Acomodei-me sobre as pernas de Mel, logo recebendo carinho.

Enquanto ronronava, minha mente foi até o dia que conheci Melissa. A garotinha de cabelos cacheados e sem os dentes da frente que me deu carinho e amor. E percebi que o tempo pode ter passado, eu posso ter envelhecido; mas ela continua sendo a mesma garotinha amorosa, gentil e inteligente.

Quando fecho meus olhos, sei que pode ser que nunca mais abra. Então cuido para que a última imagem que vejo seja o rosto sorridente da pessoa mais importante para mim.

Sinto meu coração aperta por saber que terei que deixá-la, se não agora, em pouco tempo. Mas sei que ela não é mais minha garotinha, sei que se transformou na mulher que terei orgulho de dizer que me criou.

Sinto minha respiração aos poucos se tranquilizar, mio um último eu te amo e antes do completo silêncio me rodear, ouço o som da voz de Melissa.

- Também te amo Chocolate Com Amendoim.

Contando SonhosOnde histórias criam vida. Descubra agora