A rua parecia uma pintura surrealista, de tão deformada e longa. O medo a deixava assim. Teria de atravessar vários obstáculos invisíveis, passando por lugares que, supostamente, poderiam ainda conter algum vestígio de Laura. Isso me apavorava.
Mas, durante uma respiração profunda, tive muita pena de tia Adriana. Lembrei-me dela no dia do enterro e imaginei a dor e a solidão provocadas pela falta de Laura. Eu ganharia aquela rua, nem que fosse por um ato de simples solidariedade. Com as mãos tremendo, abri o portão da portaria e fui. Esperei até que os carros deixassem a rua completamente vazia. Nunca havia sido tão cautelosa ao atravessar, mas eu mesma queria encontrar um motivo que justificasse a minha desistência, pois, a cada passo, o coração acelerava a ponto de eu desconfiar que as pessoas ao meu lado podiam ouvi-lo.
Quando cheguei ao outro lado da calçada, fixei meu olhar na portaria de Laura, porque queria fugir de qualquer gota vermelha de amizade que ainda estivesse no chão. Toquei o interfone, entrei. O porteiro me olhou com cara de quem ia me consolar. Ainda bem que não falou nada, porque queria deixar minha raiva dormindo dentro de mim enquanto conversasse com tia Adriana, e, cada vez que me tratavam com pena, ela virava um vulcão descontrolado. Fui andando em direção ao elevador, pedindo que aquela tarde acabasse logo. Chegando ao corredor do 13º andar, o rosto triste me esperava na porta do apartamento, como se eu fosse seu último suspiro.
No caminho do corredor até a porta, minha cabeça não descansou. O que eu faria? Daria, simplesmente, um silencioso abraço? Diria meus pêsames? Choraríamos juntas? Novamente a sensação dos pés grudados no chão, com medo de prosseguir. Optei por olhá-la e esperar sua reação. Tia Adriana não tinha nem forças pra um gesto, fosse de amor, fosse de dor. Me viu, deixou a porta aberta e entrou. Entrei com menos facilidade que ela. Aquele território era estranho pra mim sem Laura. Era a primeira vez que passava por aquela porta com medo, antes, estar ali era meu conforto, era a certeza de que sairia mais forte, mas, naquele momento, eu ficava cada vez mais fraca.
A presença de Laura ganhara uma força enorme, nada tinha mudado, mas toda a decoração da casa a lembrava de algum jeito. Não só as fotos (várias nossas!), até a chave da gaveta do rack virada com a parte verde pra cima me fazia pensar que ela, por algum motivo louco e sem explicação, achava que a parte verde pra baixo traria má sorte.
Laura tinha umas superstições engraçadíssimas e eu acabava indo na onda. Na ausência, Laura nunca esteve tão presente. Tia Adriana estava sentada na cadeira em frente à mesa de jantar, apoiada com os braços em cima da mesa, que seguravam seu rosto. Imaginei que gostaria que eu me sentasse próxima a ela. Puxei a cadeira, sentei a sua frente, e ela me olhou bem nos olhos, desviou pra tatuagem e depois voltou a me encarar.
_Achei que você fosse ficar esta semana em casa.
As palavras dela saiam devagar, arrastadas...
_Tinha um trabalho pra apresentar. O da música, que a gente fez aqui.
_Falaram o que na escola?
_Comigo, nada demais...
Menti.
_Fizeram alguma palestra, alguma reunião, alguma coisa pra mostrar por que um filho se mata?
Congelei.
_Não...
_Deram algum ensinamento de como ser mãe e não deixar seu filho se matar?
_Não...
Percebi que tia Adriana estava buscando respostas pro suicídio de Laura no lugar errado. Laura não havia se matado por que ela não era uma boa mãe. Laura simplesmente desistiu e se rendeu a alguma coisa que eu ainda não sabia o que era. Nós resolvemos continuar. Tive vontade de lhe fazer um carinho, mas o meu desconcerto com aquela situação já tinha criado um muro alto de pedras entre nós. Apenas respeitei seu silencio de reflexão e as lágrimas que desciam espontaneamente.

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A Teia dos Sonhos
Teen FictionJúlia e Laura são duas adolescentes, de 16 anos, que, para eternizar a forte amizade que as une, decidem tatuar uma Teia dos Sonhos em seus braços. A euforia pela tatuagem única, desenhada por Júlia, esvai-se no dia seguinte, quando ela recebe a not...