Capítulo 4

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-Nem pensar.

-Pensa, trata-se da tua grande oportunidade!

Tardou, mas finalmente chegou o dia em que a Matilde endoideceu, pensei.

-Matilde, fora de mim aceitar tal plano.- afirmei decidida.

-Jessica, este é o primeiro passo para que Jenzo se torne real.- disse com os olhos a brilhar.

-O que é que acabaste de dizer?- perguntei com as sobrancelhas arqueadas de espanto.

-Jenzo, é uma mistura de Jess e Enzo, é um nome de "shipper" para quem é a favor de que vocês fiquem juntos.

Revirei os olhos, ela tinha de estar a brincar comigo...explicar-lhe o facto de que eu e o Lourenço desde há meses que ainda não tinhamos progredido, iria demorar muito tempo, por isso preferi ignorar o comentário.

A grande oportunidade a que a Matilde se referia era a uma peça de teatro que a nossa turma está encarregue de organizar em virtude de um projeto de Expressão Dramática que decorre na escola. Já se sabia a temática da peça, era um romance, foi assim decidido por uma sondagem feita a alguns alunos da escola. A Rita estava encarregue de escrever o guião, o Ricardo com o seu enorme talento de conceber os cenários... Tudo estava organizado. Faltava agora escolher os atores. É aí que entra a ideia da Matilde, de alguma maneira ela estava a tentar que eu ficasse com o papel de "Julieta" e ele com o de "Romeu".
Por muito que eu argumentasse, sabia de que nada adiantava, pois ela ia obrigar-me a fazer a audição para o papel mal começa-se a procura de atores.
-Mesmo que eu tente ficar com o papel, de certeza que o Lourenço não vai fazer a audição para o "Romeu".- observei.
-Aí é que te enganas!- contestou, com um ar de quem sabia algo que ainda não havia contado.- Sabes como são os nossos amigos, eles iriam rir-se à gargalhada apenas com a ideia de o Lourenço estar no palco portanto graças a uma aposta que ele perdeu, o Ricardo e o Miguel vão praticamente arrastá-lo até a sala de audições.
-Está bem, eu alinho. Mas é bom que este romance seja bom.- disse eu pensando na cena do beijo.
Três dias depois, as audições tinham começado, eram 15 horas e eu estava sentada numa cadeira no exterior do auditório da escola a aguardar a minha vez. Sou chamada.
A mesa de jurados era composta apenas por dois elementos, o que me tranquilizou, um deles era a professora de expressão dramática e o outro era a Rita, que apesar de ter escrito o guião, a sua opinião era meramente simbólica.
Subi as escadas do palco e comecei a protagonizar o texto ensaiado, com o Manuel, um rapaz da minha turma que no dia da peça ia fazer de ponto. Pouco tempo depois terminei a declamação e desci as escadas do palco, observando a atitude do júri, mas não consegui obter nenhuma reação acerca da minha prestação.
Três dias depois foi afixada a lista das personagens da peça e os respetivos atores, a personagem feminina que eu ia interpretar havia sido atribuída à
Elisabete, eu sabia que a audição não me tinha corrido muito bem.
Entretanto sinto uma sombra por detrás de mim e uma mão que me alcança o ombro e acaba por encostar no meu pescoço, fazendo-me arrepiar. Era o Enzo, que por sua vez, estava ali para ver a quem pertencia o papel masculino na peça.
- Ufa!- suspirou de alívio após alguns segundos- Não fui chamado para o papel, do que me livrei, nunca representei nem o pretendo fazer.
- Não entendo porquê. Tu até te expressas bem e tens um jeito próprio de transmitir emoções às pessoas quando falas.
-Até pode ser verdade.-disse com a modéstia que lhe cabia- Mas não tenho jeito para fingir que sou algo que não sou, nunca tive.
Assenti. De facto, ele era um livro aberto incapaz de se transformar em quem quer que fosse.
Quando contei a notícia à Matilde ela ficou desgostosa. Todo o seu plano tinha ido pelo cano abaixo. Fazer planos para o futuro por vezes é inútil, pois a vida dá muitas volta e mais vale viver o momento tal como este nos é proporcionado.
Nas aulas de expressão dramática já nada mais fazíamos do que preparar a peça. Todos trabalhavam arduamente quer nos cenários, quer nos figurinos, quer como pontos nos ensaios. Quanto a mim, ao Enzo, à Matilde e ao Miguel como não possuíamos uma tarefa específica, estávamos sentados a fazer de público.
Mal li o guião, mas pelo que entendi, a Diana, interpretada pela Joana, e o Vitor, interpretado pelo Xavier, de 23 e 25 anos, respetivamente, tinham acabado de ficar noivos e pouco antes de anunciarem a grande notícia, tiveramuma enorme discussão que levou a passarem um longo tempo sem se falarem. Durante esse tempo, alguns dos momentos que haviam tido desde que se tinham conhecido atormentaram a cabeça de ambos e no final, como em qualquer boa história de amor, a saudade supera as diferenças e eles juntam-se de novo.
A Joana e o Xavier começaram por ensaiar a cena do segundo encontro.
"(Num restaurante banal, às nove da
noite, encontrava-se uma rapariga morena e de vestido azul com alças e ligeiramente a cima do joelho e mesmo à sua frente estava um rapaz de olhos verdes que nela fixavam.)
Vitor: Deixa- me que te diga que estás soberba.
Diana: Obrigada. Também estás encantador.
Vitor: Esse vestido reforça a tua silhueta de Deusa.
Diana: Não sejas indelicado.
Enquanto espectadora interrompi:
- Desculpa que te diga Rita, mas esta cena está demasiado formal? Quer dizer ele apenas lhe deu um elogio, até de forma bastante delicada para o meu gosto, e ela reage como se o mundo fosse acabar.
- Tenho de concordar com ela. - declarou o Lourenço.- Não é assim que as pessoas reagem em encontros.- e sorrindo para mim- embora não entendo o que é que a Jéssica quer dizer com demasiado formal para o gosto dela.
Encolhi os ombros, como se ele não tivesse entendido...
-Apenas que o rapaz podia ter dito "Esse vestido assenta-te bem" ou algo do género, pois sempre era um elogio menos forçado.
- Ou então que ele dissesse logo que ela fica boazona no vestido, não é?- disse mostrando de novo o sorriso que tinha tanto de tonto como de preverso.
-Não é necessário exagerar na honestidade, mas sim entendes-te a minha ideia.- disse rindo e ele riu também.
Passámos a aula inteira em sintonia de ideias o que me levou a pensar no quão bem nos daríamos juntos, já que eu me identificava completamente com ele e pelo que deu a reparar ele se identificava comigo também. Afinal de contas, os opostos atraem-se mas o que é idêntico permanece unido.

Silêncio FatalOnde histórias criam vida. Descubra agora