2. A porosidade entre alguns valores cristãos e pagãos

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2. A porosidade entre alguns valores cristãos e pagãos

Há mais de dois mil anos, um jovem judeu, gentil e compassivo, chamado Jesus, denunciava as classes governantes de seu tempo – e não somente os ricos e poderosos, como, também, as autoridades religiosas – por explorar e oprimir o povo da Palestina. Pregava o amor universal e ensinava que os mansos, os humildes e os frágeis herdarão a terra; tanto em suas palavras quanto em suas ações, rechaçava a posição subordinava que sua cultura dava às mulheres – Jesus proclamava a igualdade espiritual de todos. Jesus rechaçou o dogma de sua época, de que os ricos, os sacerdotes, os nobres e os reis são os favoritos de Deus... O reconhecimento, da parte de Jesus, de que nossa evolução espiritual está truncada por um modo de estruturar as relações humanas sobre uma base de hierarquização, respaldada pela violência, pode nos conduzir a uma transformação social fundamental. Os escritos de seus seguidores mais próximos – como, por exemplo, os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João – estão impregnados de seus ensinamentos, como não sermos violentos e amarmos os inimigos, a responsabilidade mútua, a compaixão, a doçura e o amor.

Aos poucos, porém, a Igreja foi crescendo e se hierarquizando – embora houvesse, ainda, formas diferenciadas de se viver (= doutrina) e se praticar (= rito) a fé cristã. Muitas seitas surgiram e muitos conflitos foram entrepostos entre os seguidores do cristianismo primitivo. A atividade pública (= ministerial) de muitas mulheres cristãs perdurou até, mais ou menos, o ano 200 d.C., mas, aos poucos, a participação das mulheres no culto foi se arrefecendo. Com Constantino, a Igreja se converteu no braço oficial do Império – mas Constantino era homem violento e cruel: mandara ferver viva sua mulher Fausta e ordenou o assassinato de seu próprio filho Crispo... Com a "imperialização" da Igreja, a violência dos imperadores a atingiu também – os próprios

líderes da Igreja ordenaram a tortura e a execução daqueles que não aceitavam a "nova ordem". Em 391 d.C., sob Teodósio I, os cristãos queimaram a grande biblioteca de Alexandria, um dos últimos depósitos da sabedoria e do conhecimento antigos...

Os cristãos dos séculos II e III participam de divergências internas – ligadas, principalmente, a questões disciplinares e práticas (como, por exemplo, a concessão do perdão aos pecadores e aos lápsi – cristãos que fraquejavam durante a perseguição, a data da celebração da páscoa, a validade do batismo dos heréticos, entre outras)131. Ainda não acontecem as grandes e aprofundadas discussões doutrinais acerca das heresias, que acontecerão nos séculos IV e V. Dessa época, preocupam a Igreja o gnosticismo, o montanismo, o maniqueísmo.

Os cristãos desse período procuram se distinguir por uma conduta moral irrepreensível. Apesar dos pequenos e naturais defeitos, no conjunto, o comportamento dos cristãos se destaca e os pagãos os admiram – eventualmente, até ironizam seu amor fraterno, sua dedicação ao próximo, seus cuidados para com os pobres e sofredores... Segundo Teófilo de Antioquia, em sua obra do fim do século II d.C., os cristãos se destacam por seu autodomínio, a continência, o matrimônio único, a castidade, a exclusão da injustiça e do pecado de seu meio, a observação da lei, a apreciação da piedade. Os cristãos rezavam muito, faziam o sinal da cruz frequentemente, evitavam espetáculos imorais e cruéis, alguns recusavam o serviço militar, soldados não eram aceitos como catecúmenos, os cargos públicos eram considerados incompatíveis com a "milícia espiritual" do cristão... Muitas profissões ligadas ao paganismo também eram evitadas – como pintor, escultor, professor, ator, lutador, gladiador, porteiros de templos, magos, feiticeiros, etc... Alguns mestres cristãos recomendavam aos fiéis a ascese, o jejum, a renúncia ao casamento – no século III, já surgem os grupos de virgens cristãs. A caridade fraterna é encorajada, como também a esmola – os próprios bispos, através dos diáconos e diaconisas – organizam a assistência aos doentes, pobres, prisioneiros e sofredores; o fato era tão extraordinário, que a sociedade romana se surpreendia com tais atitudes. Desde muito cedo, a Igreja organizou a assistência aos órfãos e às viúvas (cf. Tg 1,27; At 6,1ss), segundo regras bem definidas (cf. 1Tm 5,3-16). A igreja de Roma era, particularmente, bem organizada na assistência aos pobres – no ano de 251 d.C., sabemos que havia 1.500 inscritos em suas listas e regularmente assistidos. O dinheiro vinha de ofertas espontâneas dos fiéis (uma coleta ao menos mensal) e da doação de bens por parte de clérigos e outros – Marcião doou seus bens à Igreja de Roma e, quando foi excomungado, foram devolvidos 200 mil sestércios (cerca de 50 mil denários, o salário diário de um trabalhador)...

Entre as iniciativas comunitárias da Igreja de Roma havia a de garantir uma sepultura digna a seus fiéis, daí a criação das catacumbas (= cemitérios subterrâneos), datadas, principalmente, a partir de Calisto, bispo de Roma, em 217-222 d.C., embora esse nome só tenha sido usado após o século IX. A organização da Igreja se aperfeiçoou até criar uma espécie de "ordem" de encarregados dos cemitérios (= fossores). As catacumbas nunca serviram de esconderijo para os cristãos: somente no século IV, perto ou em cima de algumas delas, foram construídos santuários em honra dos mártires... Importantes são as pinturas das catacumbas, enquanto documentam a fé e a liturgia cristãs... No plano das relações sociais, embora sem revolucionar a estrutura do Império, a Igreja propõe uma mudança profunda e surpreendente: passada a primeira surpresa, muitos pagãos começaram a reconhecer que uma nova esperança de vida surgia para o Império, tão combalido ao longo do século III... O tecido social se rejuvenescia e revigorava, pelo espirito e prática dos cristãos. Algo da caridade evangélica começava a penetrar na sociedade imperial...


Cf. EISLER, Riane. El caliz y la espada. Santiago: Editorial Cuatro Vientos. 1996. P. 136ss.

Cf. MATOS, Henrique Cristiano José. Introdução à História da Igreja, op. Cit., p. 36ss.

Como vivia a Igreja Cristã antiga?Makyl AngeloOnde histórias criam vida. Descubra agora