O segredo do olhar

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Acordou em sua cama com despertador berrando às cinco da manhã. Esticou o braço preguiçosamente para fora do cobertor quentinho para desligar o alarme. Saltou das cobertas com o que ainda tinha de coragem e, com cuidado, pisou o assoalho para que não fizesse mais barulho do que gostaria. Foi ao banheiro no corredor, mirou sua cara amassada de sono no espelho, enxaguou o rosto e estava renovada. Voltando ao quarto, vestiu o uniforme da escola; camisa preta e calça cobalto. Ajeitou a gravata em frente a porta do armário, virou para o espelho e pegou a mochila.

- Vamos Kuro, é hoje - Disse a si mesma, ajeitando os óculos.

Desceu as escadas desanimada, sem vontade de ir para a escola. Também pudera; que dia horrível era aquele. Até sua fome tinha sumido. Empurrou duas torradas com manteiga garganta abaixo e tomou um pouco de chá.

Jogou a blusa de moletom na mochila e saiu de casa. Tomou o trem capenga para a escola e, como sempre, na virada da esquina, estava Rob com o mesmo uniforme que ela. Conhecidos desde o segundo ano do ensino médio dele e agora o último ano e a última chance deles.

- Beleza, é hoje! - Disse ele animado, tirando duas folhas de papel da mochila e as sacudindo na cara dela. - Olha! Estão perfeitos! Ninguém vai perceber que são falsos.

Kuro olhou as cédulas de resultado. Era realmente difícil acusar de falsas. Estavam bem impressas, o papel texturizado de cor amarelada, o emblema vítreo e o carimbo oficial. Ela mirou seu amigo de volta com um sorriso torto no canto da boca, ao menos isto aparentava alguma alegria para ele.

Animado aos saltos, como um menino de nove anos saindo para comprar seu presente, Rob ficava a montar seu doce futuro na imaginação. Mas sua amiga não parecia estar no mesmo nível de expectativa.

- Se acalme. Ninguém vai notar. Você viu, estão perfeitos - Dizia ele com um sorriso gentil para a amiga baixinha.

O plano era falsificar dois resultados para, assim, eles finalmente saírem do médio. E, diga-se de passagem, a garota já havia repetido quatro vezes. Ninguém se emparelhava com ela. Até suas amigas, todas, haviam encontrado seus elos, ingressado em universidades de bom nome e estavam noivas.

No último ano, surgiu Rob, um entusiasta um tanto mais novo que prometeu tirar ela do terceiro grau mais longo de todos. Com os dois resultados, ainda que falsos, eles sairíam de lá como elo um do outro. Barganha feita com um professor e os falsos resultados seriam postos na pilha da chamada.

Ao chegarem na escola, os mais de 600 alunos foram levados ao auditório. Todos nervosos, ansiosos e quase a arrancar os cabelos. Rob, então, quase espumava. Depois desse dia, poderia estudar muito mais tempo com Kuro. Já ela, estava na mesma desanimação de mais cedo. Seus olhos pesavam de sono, pois sabia que ninguém nunca poderia ser seu elo por um segredo em seu nascimento.

O diretor fez sua típica introdução ao dia do elo no início das aulas e instruiu aos alunos que entrassem nas cabines para o exame quando fossem chamados. Então seriam horas de...ZZZ. A garota de cabelos negros pegou no sono de repente. Foi acordada por Rob que estava prestes a fazer o exame. Passaram pela horda dos clubes que já tinham par e mediam dali mesmo os prováveis iniciados do ano.

O time de Gridiron ria o tempo todo e Rob fez questão de passar no meio deles. O garoto almejava aquele status, mas assim como nas universidades, somente em pares se entrava num clube. Era o plano entrar para o time e Kuro entraria para as Tigers, o grupo de elos dos jogadores.

A garota passou o mais longe possível das cavalas que eram os elos do time. Viu Rob entrar de costas na cabine branca e, logo em seguida, entrou na cabine vizinha a dele.

- Oi, Kuro. Pode sentar. - Disse Max, o médico da enfermaria que de óculos e máscara ficava irreconhecível. Ele apertou as luvas de borracha, enquanto a cadeira onde ela estava desdobrou-se, a pondo deitada. Amarras mecânicas prenderam seus braços e pernas - Vai doer um pouquinho - Ele disse com o controle da máquina em mãos. Uma caixa de vidro e metal cobriu a cabeça da jovem e duas agulhas de lazer, muito finas, perfuraram a lateral de seus olhos. Uma melodia soou em sua cabeça, a fazendo adormecer por alguns instantes. - Tudo bem terminamos por aqui, pode voltar para sua sala.

A garota seguiu para onde deveria ir meio zonza, com os olhos inchados, assim como todos os alunos que passaram pelo mesmo processo. Na sala 3-B, todos comentavam seus exames e, pela cor dos olhos, especulavam quem seriam seus pares. Logo, um a um, começaram a ser chamados para receber os resultados. Kuro ainda era a única que não ligava; seu escolhido já estava marcado. Vestiu a blusa cinza que estava na mochila, puxou o capuz para frente e dormiu debruçada na mesa.

Algum tempo depois, seus olhos arderam e ela acordou. Secou algumas lagrimas que saíram e, então, lembrou do sonho que acabara de ter com Rob. Talvez, por mais falso que fosse ser o elo dele, isso poderia ser algo bom, afinal, jamais encontraria alguém compatível com ela. Seria melhor aceitar e sair da escola com ele. Do contrário, para sempre seria uma repetente.

Chegou a sorrir pensando que seria bom alguém como Rob por perto.

- Rob Kay - Disseram no alto falante, junto com o nome de mais uma garota.

O sorriso de Kuro desapareceu. Ela foi até o corredor e lá vinha Rob, seguido de Amuro da 3-E. Eles passaram pela morena pasma na porta. Os falsos resultados não funcionaram. Era o fim. Mais um ano. Não havia esperança que suportasse. Atrás dela, os outros cochichavam que a esquisita ficaria sozinha mais um ano, que ela não tinha jeito e que era culpa dela sua situação.

Sem aguentar mais, correu para o banheiro e se trancou na cabine do meio. Sentou sobre a tampa do vaso, abraçando os joelhos e começou a molhar as mangas de sua blusa cinza com as lágrimas.

- Eu não pedi pra ser assim... - Arfou em seus braços. - ...nunca quis esses olhos... - Terminava de responder aos cochichos maldosos dos outros.

O inchaço tornava as lágrimas ardidas e ainda mais doloridas. O choro abafado nas mangas embaçou as lentes de seu óculos. Ela o tirou um pouco e seus olhos pareciam mudar de cor. O usual castanho escuro se dissolvia em outro tom.

Algumas meninas entraram conversando no banheiro de repente. No mesmo instante, Kuro engoliu todo o choro, recolocou os óculos e saiu da cabine. As meninas a cercaram, socaram e a chutaram. A morena pôde apenas proteger o rosto no chão. Elas a insultavam, diziam que ela não prestava, que merecia ficar sozinha e a desprezavam totalmente.

As dores dos chutes em seu estômago a fizeram desmaiar e ela acordou com o sol quase no horizonte. Levantou devagar, se apoiando no box e limpou um pouco de sangue no nariz. Seus olhos estavam um pouco inchados, mas por conta das lágrimas. Ela estava triste, mas aceitando seu destino, enfim. A escola estava vazia. Tudo o que pôde fazer foi pegar sua mochila e voltar dolorida e chateada para casa.

Ao chegar a mãe lhe deu um abraço e a morena despencou chorando.

- Qual é o meu problema?! O que tem de errado comigo?! - Reclamou em meio a lágrimas.

- Não há nada de errado. O problema não é com você, são os outros que não entendem que você é especial - A mãe tentava acalmar sua filha - Vamos, fiz um bom jantar.

- Não tô com fome. Só... quero dormir agora - Disse a filha indo para o quarto.

Sua mãe nem tentou argumentar e a deixou ir. Kuro foi para o quarto, jogou a mochila num canto, sentou na cama e tirou os óculos. Seus olhos mudaram do castanho para o cinza e ela os mirou no espelho.

- Porque nasci com esses olhos? - Se lamentou.

Sem pensar em mais nada, ela se lançou sobre a cama e pegou no sono facilmente. Nem notou o envelope com o resultado de seu exame em sua mochila.
                               ***

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