Clara - Parte I

150 4 0
                                    

  Era mais um dia definitivamente feliz na minha vida. Não bastasse meu namorado perfeito e minha vida perfeita (meus pais não era perfeitos, mas nem tudo é perfeito), eu tinha conseguido passar 24 horas seguidas sem dar uma mordida sequer num chocolate. Ou seja, meu peso estaria, muito breve, em questão de dias, praticamente perfeito.
   Perfeito para os meus padrões, veja bem! Nunca gostei de mulher esqualida, mulher Olivia palito, varapau. Não sou, nem era muito de seguir moda, gostava de ir contra a moda. Quem essa moda pensa que é para me dizer o que eu como, o que eu visto e o que eu bebo?, Eu questionava.
   O Cabelo, meu namorado da adolescência, graças à minha dileta deusa do amor, Afrodite, nunca gostou de magrelas. Sempre gostou de... Conteúdo... Se é que me entende. E eu sempre fui, modéstia à parte, a Rainha do conteúdo, Rainha com maiúscula mesmo, para ficar bem imponente. Além do conteúdo fora de série, eu era Rainha da piadinha no fundo da sala, das tiradas engraçadas e inteligentes, dos comentários espirituosos.
   Meu dia infinitamente feliz seguia mais feliz a cada segundo. Mais cedo, no supermercado, eu protagonizara um efeito e tanto: soube diferenciar, pela primeira vez, alface de rúcula, que eu chamava, respectivamente, de samambaia e espada-de-são-jorge antes de entrar para o vigilantes do peso.
   No vigilantes, minha vida mudou. Em menos de três meses, perdi 6 kilos!!
Para o meu padrão de perfeição, ainda precisava perder mais uns sete, oito, mas estava tão feliz, tão feliz, que, pecado dos pecados, permiti-me dar uma passada de dedo na cobertura da torta-mousse de chocolate que mamãe tinha comprado
   Minha relação com açúcar sempre foi compulsiva, doentia, sofrida, cheia de culpa. Mas eu amava doces. E os doces, definitivamente, não me amavam. Eu comia um e engordava como se tivesse comido trinta em compensação, a vacona da Tuca (eu eu amo, mas sempre foi magra de ruim) comia trinta doces e parecia que não tinha comido nenhum. Para mim sempre foi um mistério a magreza da Tuca.
   O Cabelo iria jantar lá em casa naquele dia infinitamente feliz. Mais uma vez eu tentaria fazer com que minha adorável família gostasse do meu adorável namorado de mais de um ano. Um ano!
- O que é que esse garoto tem a acrescentar na sua vida, clara? - mamãe puxava assunto, suuuuupersimpatica.
- Amor, mãe! Isso não é mais que suficiente?
- Amor, amor... Desde quando amor é importante? Não vê quanta gente vive se separando logo depois de casar?
- E quem disse que eu casar com o Cabelo? Eu só tenho 16 anos, nem penso em casamento!
- Mas do jeito que a coisa está, é esse o futuro que nos vemos e não queremos para você, minha filha - papai se intrometia, pela primeira vez.
- Fiz rabada, espero que esse menino coma rabada.
- Rabada? Cabelo é vegetariano, mãe!
- Ihhh.... Já era!
   Ela nunca admitiu, mas, claro, fazia de propósito. Toda vez que o pobre Cabelo ia comer lá em casa era a mesma coisa. Mamãe inventava de fazer carnes de todos os tipos: cabrito, javali, cordeiro... Sempre "esquecia" que ele era vegetariano. Para acompanhar, arroz e farofa. Só. Crueldade! A comida mais seca e sem graça da face da terra ela servia para o meu namorado perfeito!, Desejava, nitidamente, espanta-lo pelo estômago.
- Não tem uma saladinha, dona Inês? - pedia Cabelo, todo sem graça.
- Salada? Tem sim. Espera ai, que vou pegar - reagia minha mãe, com a pior vontade do mundo, antes de se dirigir para a cozinha, resmungando, a antipatia em pessoa.
   Um namorado preocupado com a saúde, e eu o oposto do padrão de beleza reinante. mas o Cabelo não ligava, como já disse. Gostava de garotas com, digamos, recheio farto.
   Ele era guitarrista de uma banda de rock-pop-maracatu-forró-eletronico, inacreditavelmente batizada de "Ilusões Estapafúrdias do Novo Mundo", que os fãs abreviaram para Ilu. "Bora no show da Ilu", "A Ilu vai ficar esse fim de semana!".
   Eles mereciam. Quem mandou escolher um nome tão bizarro? Avisei algumas vezes que com um nome desses eles estavam fadados ao fracasso. Ninguém me ouviu, os integrantes queriam um nome com atitude rock and roll, seja lá o que isso signifique. Porque esse nome tem tudo, menos atitude de rock and roll, né não?

Era Uma Vez, Minha Primeira VezOnde histórias criam vida. Descubra agora