Clara - Parte II

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   O cabelo tinha 18 anos, morava com os.pais, era simpático, engraçado, tocava bem pra caramba e acreditava bravamente no sonho de viver profissionalmente de música.
   Eu admirava nele a disciplina, o rigor com que regava sua vocação. De sorrisão no rosto, ele acordava de madrugada para tocar seu violão horas a fio, era viciado em música.
   Isso me derretia. Essa certeza do que ele queria fazer na vida (eu nem suspeitava naquela época), a vontade de viver criança, o que deve ser um baita privilégio... ele era ou não era perfeito? E era bonito pra caramba, tinha sombrancelhas grossas, não era nem muito alto nem muito baixo, todo musculoso, saradinho, bundinha empinada, braço forte, másculo, traços bem definidos e uma tatoo em cada braço. Uma boca carnuda, uma carinha de bebê extraordinária, um par de olhos pretos, pretos, pretos e um solo de guitarra capaz de conquistar qualquer mulher. Ah, sim! Tinha um cabelo espesso bem preto, meio cacheado, pelo qual morria de amores, ninguém podia tocar, mexer nas suas melenas. Não demorou muito para que ganhasse o apelido que carrega até hoje.
   Seus pais davam a maior força para a sua vocação artística, e eu achava isso o máximo. Meu pai queria que eu fizesse Medicina, para herdar seu consultório. Minha mãe gostaria que eu me tornasse uma mulher prendada, para seguir seus passos de dona de casa de sucesso. E meu sonho era trabalhar com biologia marinha, veja você. Hoje sei que, se não tivesse seguido minha vontade, seria a pessoa mais infeliz do mundo.
   Tentei fazer Direito, sempre gostei de falar, escrever .. pensei que bastava para me formar, passar num concurso e ganhar meu dinheiro no fim do mês. Mas achei a faculdade um tédio, só aguentei fazer dois períodos. Não consegui me enxergar fazendo qualquer coisa ligada ao que aprendia nas aulas e vi que cifras não seriam o ingrediente principal para eu me tornar uma mulher realizada profissionalmente.
   Os pais do Cabelo eram muito mais legais que os meus. Incentivavam o filho a ser feliz, diziam que a gente está neste planeta para ser feliz. O Cabelo tinha um adesivo na janela que dizia: "A vida é curta. Curta." E é isso mesmo.
   O Cabelo começou a trabalhar antes mesmo de fazer 18 anos. Determinado, fez um curso de DJ, criou uns panfletos, imprimiu, distribuiu pelo condomínio, pela escola e por todos os lugares com gente e, de uma hora para outra, passou a fazer o som de várias festas. Primeiro no condomínio, depois em outros pontos da Barra, Recreio, de Jacarepaguá. Com apenas três, quatro meses de carreira ele já começava a fazer um bom pé-de-meia botando para tocar o que o pessoal na pista queria ouvir.
   Mas o barato dele era criar música, não apenas tocá-la. O que fazia feliz era pensar com os dedos na guitarra ou no violão, passar horas a fio experimentando, ousando, corrigindo, mudando, quebrando a cabeça com notas e acordes. Eu era apaixonada por isso. Via foto dele, sorria. Lembrava dele compondo, sorria. Pensava nele, sorria.
   Minha mãe, por sua vez, pensava nele, morria. De ódio.
- O garoto é músico. Ou seja, burro, OPTOU por ser pé rapado. E os pais não fazem nada, vão deixar o menino fazer faculdade de música. Isso lá é faculdade?
- Eles acreditam no talento dele e sabem que o Cabelo vai vencer. Isso e difícil de entrar na sua cabeça pessimista?
- Ninguém que se chama Cabelo pode vencer, minha filha. E viver de música é lindo em sonho, mas quantas pessoas você conhece que vivem de música?
   Nenhuma, eu não conhecia nenhuma.
   Droga!
   Que raiva!
   Um nome! Só precisava de um nome!
   E não adiantava dizer os vários nomes que me vinham à cabeça: Frejat, Zeca pagodinho, Nando Reis, Luan santana. Droga! Tinha de ser uma pessoa do meu convívio, que eu visse sempre, que eu pudesse tocar, falar...
   Se tivesse, eu daria um milhão de dólares a quem soltasse um nome, um nomezinho que vivesse de música, que eu conhecia, que ELA conhecesse...
   Porcaria! Não lembrei de nenhum.
   E fiquei irritada. Afinal, era um acinte ter pais tão ligados em grana como os meus.
   O Cabelo vivia implicando com a minha desafinação. Mas eu adorava cantar com ele, improvisar chocalhos com arroz e copos de plástico para acompanhar as músicas nos saraus que ele e o pai (que também tocava muito) promoviam em seu aconchegante apartamento.
   Apartamento onde, obviamente, eu numa nem cogitei a ideia de dormir. Minha mãe me mataria.
   Eu era virgem. E feliz.
   Até hoje não sei explicar o por que fiquei virgem tanto tempo se já tinha encontrado um namorado mais que bacana. Coisas de adolescentes. Medo, inseguranças, aquele blá blá blá todo.
   O cabelo nunca encrencou com a minha virgindade. A gente se divertia bastante mesmo sem chegar aos finalmentes. Com isso, eu ia adiando, adiando... E ele não se importava.
- Quando você estiver pronta é só falar. Sem pressa, sem pressão - ele dizia.
   Lindo, não?
   E ainda era carinhoso, estava sempre me fazendo cafuné, me abraçando, me pegando no colo, cozinhando pra mim. Cozinhando, ou seja, fazendo comida, comida! Que era a coisa que eu mais amava no mundo depois dele.
   O problema é que nunca ficamos sozinhos, só nós dois. A não ser quando eu ia pra casa dele, porque na minha casa minha mãe grudava na gente puxando os assuntos mais absurdos, só pra não deixar a gente namorar.
-Cabelo, você viu na tevê o documentário sobre reprodução das aranhas caranguejeira? - ela perguntava.
- Não vi, não senhora.
- Ah, que pena! Não tem problema, vamos falar dele mesmo assim. Você acredita que quando a aranha macho e a aranha fêmea copulam...
   É assim por diante.

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⏰ Última atualização: Jun 22, 2020 ⏰

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Era Uma Vez, Minha Primeira VezOnde histórias criam vida. Descubra agora