Tereza - Parte V

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  Não dormi nada. No dia seguinte, meus olhos eram duas almofadas, pior, dois pufes, daqueles bem gorduchos.
  "Não era para acontecer", eu tentava pensar. "Ele pode até ser a pessoa certa, mas a hora é errada", eu me come placa, supertrabalhada nos clichês.
  Minha mãe bateu na porta.
-Não quero falar, mãe, por favor. Desculpe, mas não quero ver ninguém.
-Está bem, está bem. É que chegaram umas flores, achei que você gostaria de saber quem mandou.
-Quem foi? - eu perguntei, com os olhos ansiosos.
-Foi um tal de Gaspar - ironizou minha mãe. -Mas acho que você xingou o pobre para a Clara a madrugada inteira, não deve gostar muito dele.
  A Clara, coitada, tinha ido dormir lá em casa, para me fazer companhia e desviar meu pensamento para outro canto. Mas eu estava tão chata que passei a madrugada inteira chorando e maldizendo o Gaspar, maldizendo o Gaspar e chorando. Amar sem ser amada é tão chato... eu não estava achando a menor graça naquele sofrimento todo. Ela não me aguentou (com toda razão) e se mandou antes de amanhecer. Disse que eu estava um porre, nas suas sempre sinceras palavras.
  No dia seguinte, quis esgana-la por ter ido embora e não estar ao meu lado para me dar um abraço apertado. Eu tinha de abraçar alguém. Nunca recebera flores.
  Que chique! Flores! Achava que isso era coisa de adulto. Adulto de novela.
-Quero ver as flores, mãe! - berrei, histérica.
-Posso entrar?
-Dââââ!
-Nossa! São.... são lindos.
  Eram girassóis. Um lindo vaso de girassóis. Na tarde que passamos juntos, inspirados pelo Jardim Botânico, conversamos sobre flora e eu disse a ele que era fanática em girassóis.
  Puxei minha mãe pata perto de mim e esmaguei-a num abraço, sem dizer nada. Passamos um tempo aninhadas em silencio, ate que perguntei:
-Nunca passou pela minha cabeça que um dia ganharia flores. O que eu faço agora?
-Agora você liga para agradecer.
-É? - eu disse, sorriso grudado no rosto.
-É. E nesse telefonema, já que ele terminou com a 'the cow'...
-Ô, mãe, não fala assim dela... - pedi, rindo. Ela me ignorou.
-... você pode chamá-lo para vir aqui, ou para ir a um show, ou à praia...
-É? -perguntei, mais feliz.
-É, moça! E não sei por que a senhora ainda não esta no telefone falando com ele.
-Não é assim, mãe! Preciso ensaiar!
-Você? Ensaiar para falar com um menino? Xiii... É muito mais sério do que pensava!
-É? - eu quis saber, com os olhos desconfiados.
-É! E para com esse "é?" Porque já me irritou! - ela brincou, para descontrair. -Não tem cartão?
-Cartão? Cartão! Lógico!
  Logo encontrei.
  "Sou péssimo para escrever. Prefiro falar olhando no olho. Posso te encontrar às 18h na sua portaria?
Beijo, Gaspar."
  Expulsei minha mãe do quarto e liguei voando para ele. Coração nas amígdalas.
  Ele atendeu.
-Obrigada pelas flores. São lindas - agradeci, de cabeça entortada e voz infantil.
-Achei a sua cara.
  Dei uma risadinha derretida.
-E então? Que tal hoje às seis?
-Sobre isso... Gaspar, eu não quero que você se sinta pressionado, sei que não deve estar pronto para nada sério, você deve estar fugindo de relacionamentos sérios, eu entendo perfeitamente, sério...
-Eu não estou pressionado, não estou fugindo de relacionamentos sérios e quero muito conversar com você. Te vejo mais tarde, então. Beijo.
  Logo cheguei à conclusão de que ele estava num momento ruim na noite passada. Todos nós tem Só momentos ruins e antipáticos, ué. Faz parte da vida.
  Apesar de a minha mãe ter insistido 986 vezes para que ele subisse, Gaspar preferiu conversar comigo a sós no hall da portaria.
  Mal saí do elevador e ele veio na minha direção com olhar de filhote de panda. "Claro que eu te desculpo pela grosseria e pela falta de tato de ontem à noite", eu quase disse para ele, derretida, antes que ele verbalizasse qualquer coisa.
  Na maior mudez, ele pegou meu rosto, me deu um beijo meio sem graça, e disse:
-Eu não posso te enrolar. Gosto de você dê mais, mas não posso me ligar a ninguém agora. Queria te dizer isso olhando no olho, sem barulho, sem gente em volta. Acho que ontem eu fui grosseiro, não fui claro como eu queria, não disse o quanto eu gosto de você. Gosto mesmo, de verdade. Mas namorar você... não rola. Não rola mesmo.
  Não! Isso não! Não acredito que você me deu flores e me fez sair de casa para me dizer isso! Que cara mais sem alma, sem coração! Quem você pensa que eu sou? Hein? Hein?, era o que eu planejava perguntar a ele, logo em seguida.
-Mas... mas... mas eu.. eu achei que você é eu... que... que eu e você.... q-q- que a gente podia...
  Burra! Burra! Por isso dizem que paixão deixa a gente burra! E cega! E gaga, eu tinha acabado de descobrir. Vê lá se isso era coisa para se falar? Aquela Tereza não era eu! Era uma Tereza bobona, chorona e de coração mole, eu não gostava nenhum pouco dela. Preferia a outra, que não ligava para assuntos amorosos e estava mais a fim de se divertir do que de qualquer outra coisa.
-Eu também, eu também acho que você e eu daríamos um casal muito legal. Mas...
  Droga. Porcaria de "mas" sempre atrapalhando meus planos, minha vida! Palavra mais inconveniente! -... eu não estou preparado para ter nenhum tipo de relacionamento agora. E não é nada com você. É comigo. Preciso de um tempo para mim. Preciso ver como fico sozinho, se sei ficar sozinho...
  E preciso aproveitar minha solteirice, já que as cariocas são bem mais soltinhas que as americanas. É preciso beijar na boca, porque sou bonito à beça e sei disse, e preciso sair com meus amigos, e preciso ir ao Maraca, blá-blá-blá, foi o que provavelmente ele dizia, porque àquela altura eu não escutava nada, só o barulho do vulcão que explodia raivoso dentro de mim.
-Me desculpe... -ele terminou, de cabeça baixa. -Acho que daríamos um casal legal, gosto de você de verdade, mas a hora não é agora.
  Tudo isso, atenção!, tudo isso na minha PORTARIA! Ele se quer se deu ao luxo de ter aquela conversa comigo em outro lugar, em outra portaria, que fosse. Ou no jardim do meu prédio! Agora a língua do Severino as encarregaria de dar a sua versão para todo o condomínio sobre o pé na bunda que eu levei na sua frente.
  A verdade é que eu não estava nem ai para o Severino! Queria que ele evaporasse com as lavas do meu vulcão. E junto com o Gaspar! E que os dois queimassem e ardessem juntos por longas, sofridas, dolorosas e intermináveis horas.
  Ai, não! Não desejava isso para o Severino, coitado.
  Só para o Gaspar, mesmo.
-É isso, então? - perguntei, antipática, com o último resquício de dignidade que eu tinha, segurando as lágrimas com todas as forças.
-É isso - o idiota desalmado respondeu.
-Então tá. A gente se vê. Tchau.
  Virei as ccostas peguei o elevador e subi.
  Por outro lado achei ótimo. Pronto! Aquela historia que mal havia começado agora tinha acabado de vez. Melhor assim. Eu estava livre de novo, livre para sair, para voar, para aproveitar minha solteirice, minhas amigas, os solteiros, a praia...
  Bati a porta, não sem antes pendurar na maçaneta aviso "Garota irada. Não entre bem de for convidado(a)", dei um grito cinematográfico, um tanto exagerado, de dor, cai na cama e decidi: nada de choro!
-Esse garoto não merece nem uma lágrima! - gritei, diva.
  Logo em seguida abri o berreiro é a represa. Nossa, como tinha água dentro de mim! Era lagrima para tudo quanto era lado, em dois tempos meu nariz parecida uma bola de futebol e meus olhos pareciam dois hambúrgueres.
  Eu estava mesmo apaixonada pelo insensível do Gaspar. Porcaria! Quanto tempo a gente demora para esquecer uma paixão?, era tudo que eu queria descobrir.
  Passaram-se dias e eu só queria saber de escola-casa-cama-escola. Fiquei triste e emburrada em casa durante um mês, não queria nem saber se estava sol ou nublado, se o Fluzão tinha ganhado ou perdido. Eu era o retrato da menina abandonada por seu grande amor. E, que sacanagem!, eu nem tinha vivido esse grande amor.
  Que mundo injusto!
  Aquilo estava indo longe demais. Ficar com casa não combinava comigo, repetiam minhas amigas a todo tempo. Acreditei. E me perfumei, me aprumei, ne olhei no espelho 789 vezes e sai toda linda (devastada por dentro, mas uma fortaleza por fora).
  Segundo os preceitos da principal Lei de Murphy, "se uma coisa pode dar errado, dará", minha primeira noite pós-trauma-gaspar foi uma lástima. Assim que pus os pés no Flowers in The Sky, 'point' novo da Barra, dei de cara com o quase-gringo que desvatara meu coraçãozinho tão legal.
  E pior! Ele estava beijando uma menino que devia ter idade para ser filha dele, de tão pirralha.
-Um cara velho desses com uma garotinha de 13 anos? Fala sério! - reclamei.
-Ele esta longe de ser um "cara velho" - disse Tuca, pacientemente.
-E a menina com ele não tem 13 anos, deve ter uns... - Clara continuou.
-Quinze! Pode dizer, Clara, pode dizer! É uma idiota! Os dois são idiotas! Megaidiotas! Ultraidiotas! Precisavam ficar se beijando aqui, na frente de todo mundo? Só pra mostrar?
  Eu acabei me transformando em Tereza, A mala. Estava uma vaca com minhas amigas, só dava patada nelas, estava absolutamente insuportável, nem eu me aguentava. Quis ir embora, mas as meninas sabiamente removeram essa ideia da minha cabeça.
-Quer mostrar para ele que ele te atinge, é isso? - repreendeu-me Clara.
  Tá! Que saco amigas tão... fofas. Tadinhas, elas foram tudo para mim naquele período lamuriento e eu pronta para xingá-las
  Mais um mês se passou e eu não parava de esbarrar com o Gaspar. Na praia, no cinema, no shopping, na sorveteria, nas festas. Na Barra, em São Conrado, em Ipanema, no Leblon. Sempre com amigos. Sempre olhando todas e sendo muitíssimo olhado.
  Doía vê-lo nos braços de meninas que ele mal conhecia e que jamais conheceria a fundo. Mas eu me mantinha no salto.
  Outro mês passou e, com o tempo, eu já nem estrilava em vê-lo. Vê-lo com outra era chato, claro. Chatissimo. Mas eu pensava comigo: "Amor, sem sentimento traiçoeiro, abandona esse corpinho que não te pertence! Sai! Sai!", e conseguia ate sorrir para o garoto. Mais tarde, consegui até dar dois beijinhos nele!
  Em quatro, cinco meses, ainda doída na alma e na bunda que levou um coice, eu, aos poucos, me acostumava com a vida de amar sem ser amada.
  Tal qual uma novela, dessas em que todos os personagens se encontram casualmente num restaurante, como se no Rio tivesse apenas um restaurante, esbarrei com o Gaspar de novo. Não num restaurante, mas numa casa de sucos.
  Ele sozinha. Eu sozinha. Ele tinha ido à Barra visitar uns amigos, eu estava indo me matricular num curso de espanhol.
-Oi... bela - ele disse, imitando meu jeito de falar. Sempre me referi às pessoas como "belo" e "bela".
  Antes de virar para retribuir a maravilhosa saudação, abri um sorrisinho feliz, feliz, feliz. E, pela batida do meu coração, percebi que o chato daquele menino ainda mexia, e muito, comigo.
-Oi... belo... - respondi, maliciosamente sedutora.
  Burra! Burra, mil vezes burra! Eu sei! Aquilo não era hora para seduzir, era hora para fazer jogo duro, duríssimo.
-Esta fazendo alguma coisa importante?
-Não, estou voltando da casa de uma amiga - mentira. A matricula podia esperar. - Por quê?
-Não quer me fazer companhia? Vou tomar uma tigela de açaí.
-Claro.
  Fora por água abaixo toda a certeza que eu tinha de que jamais sairia com ele de novo, jamais beijaria de novo aquela boca macia, jamais olharia novamente com os mesmos olhos para aqueles olhos lindos.
  Enquanto esperávamos, Gaspar me botou contra o balcão e me roubou um beijo daqueles. Sei que não devia, que devia ter feito jogo duro, mas... ah!, nessas horas a gente pensa com no coração (ou seja, não pensa).
  Ficamos um bom tempo de mãos dadas. Ele devorando o açaí. Eu, saboreando meu suco de morango com tangerina. Entre beijos com gosto de fruta e olhares derretidos, reatamos nossa amizade, nossa conexão, nossa química. E que química!
  Dali em diante passamos a ficar toda vez que nos encontrávamos. Tudo muito light, sem compromisso ou cobranças. O período mulherengo do Gaspar parecia ter passado de vez e o quase-gringo começava a dar sinais de que o que ele queria mesmo era um colo para chamar de seu.
  E eu dei o meu para ele.
  Ele me ligava diariamente. Eu ligava para ele diariamente.
-E ai? Estão namorando? - minha mãe perguntava pela milionésima quinta vez.
-Não, mãe! A gente está só ficando!
  Mas era mais que isso. Eu sabia. Ele sabia. Minha mãe sabia. A gente só não assumia que sabia. Ficamos uns três, quatro meses cada vez mais juntos até nos declararmos perdida e oficialmente apaixonados.
  Éramos o retrato do casal feliz. Ele precisava do tempo que passou sozinho. Eu precisava amadurecer aquele sentimento estranho que me queimava a barriga e se chamava amor.
  Em oito meses de namoro, nós não nos desgrudavamos, vivíamos juntos para cima e para baixo. Com ou sem amigos por perto, mas sempre juntos.
  Um dia, minha mãe sugeriu que eu chamasse o Gaspar para ir a nossa casa na Serra. Lá tinha a "casa dos adolescentes", vizinha à cada principal, em que ele poderia ficar.
  Pedi para chamar a Clara e o namorado dela e lá fomos nós para Petrópolis. Tivemos a chance de ficar sozinhos entre quatro paredes quando meu pai decidiu comprar um carro antigo (que ele colecionava desde que eu me entendo por gente) num ferro velho na estrada para Juiz de Fora.
  Mas eu não quis. Sonhava com algo mais especial para uma relação especial como a nossa. Não podia ser com pressa, com medo de que chegasse alguém. Pensei bem e cheguei à conclusão de que nossa primeira vez merecia ser a melhor. A mais tudo de bom, a mais romântica....
  Na noite seguinte, já em solo carioca, Gaspar e eu fomos para uma festa de aniversário na casa de um amigo dele, no Leblon, e os beijos esquentaram como nunca. Marcamos de comemorar nosso nono mês juntos no Jardim Botânico.
  Fomos ao parque e, de lá, partimos rumo à cachoeira onde tudo começou. Como estava vazia, rolou ali mesmo nossa primeira vez, cercada de verde, arbustos providenciais e muita paz.
  Ninguém chegou, ninguém passou (se passou não fez barulho), nem os mosquitos atazanaram. Ficamos lindamente a sós, num momento que eu jamais vou esquecer, a água da cachoeira caindo, nossos corpos unidos num amor que eu jamais imaginei que conseguiria ssentir de tão grande e intenso...
  Minha primeira vez foi extraordinária. Mais que isso. Tudo deu certo, a cumplicidade é o carinho eram tantos que parecia que fazíamos aquilo há anos. Gaspar foi paciente, carinhoso, e eu nem fiquei nervosa. Foi natural como deve ser. Sem dor (quase), sem medo.
  Ficamos juntos por mais cinco anos. Bastante coisa né? Depois que entramos na faculdade a relação começou a amornar é o Gaspar a se distanciar.
  Hoje, é com grande orgulho que digo que aquele amor enorme e com carta de eterno deu lugar a uma amizade maravilhosa.
  Eu dou até conselhos amorosos para ele, que ficou ainda mais bonito com o passar doo anos e voltou a tomar gosto pela arte de beijar mulheres variadas. Ele diz que ainda sente ciúmes de mim e não é maduro o bastante para me dar dicas masculinas.
  Mesmo depois de tanto tempo, ainda existe uma bolsa de apostar que prevê nossa volta. Já ensaiamos voltar algumas vvezes mas, na boa, acabou. O encantamento acabou. Terminamos sem mágoa, com o respeito intacto de um pelo outro.
  O amor da minha vida virou o amigo da minha vida.
  E eu sou muito feliz com isso.
  Mesmo porque acabo de conhecer um cara que... ah! Deixa para lá. Isso já é outra história, fica para uma outra vez.

Era Uma Vez, Minha Primeira VezOnde histórias criam vida. Descubra agora