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A dor rasgou suas costas como ferro fervente, enquanto a queimação que o gelo causa se espalhava pelo corpo da adolescente. Mais tarde ela não saberia dizer se havia gritado ou não, já que o único som que conseguia ouvir era o de seu próprio sangue, rugindo e estalando como gelo fino em seus ouvidos. A dor era tanta que sua visão se tornou branca. Natasha não soube dizer quanto tempo aquilo durou, pareceram anos, pareceram segundos. Foi rápido como se fogo derretesse as areias do tempo e o vidro se tornasse líquido se tornasse água e escoasse com o chiado de uma vela derretendo. Mas quando aquilo pareceu diminuir, não parar, mas apenas diminuir o suficiente para que ela pudesse ouvir a voz que lhe chamava, gentilmente, a encorajando a procurar algo ao qual se prender, a segurar a corda que lhe prendia à consciência.l, ela se forçou a prestar atenção, em uma tentativa de conseguir ignorar, mesmo que momentaneamente, tamanha agonia.
_Está tudo bem agora, respire._A garota obedeceu, apesar de até essa simples ação doer. Como nunca havia reparado o quanto respirar exigia de seu corpo?_O pior já passou. A dor se irá logo, você só precisa descansar._Usando mais força de vontade do que julgava possuir, Natasha abriu os olhos para encontrar orbes azuis e frias, o gelo brilhando em vitória, apesar da expressão impenetrável. Também havia algo em volta da senhora da morte, como uma ondulação de cor, do mesmo tom frio de seus olhos._Foi inevitável. Você manteve-se presa em uma casca humana por tempo demais.
_O que...?_A voz mal passava de um sussurro, quando a mais nova se deu conta de que em algum momento havia caído de joelhos e era a mãe que lhe sustentava o peso. Todo seu corpo ainda doía, não tanto agora, o que lhe permitiu sentir que sua camiseta parecia muito larga e seu peso parecia errado, algo nas costas... Também podia ouvir algo pingando e seu estômago deu uma volta ao deduzir que era seu próprio sangue, já que podia sentir um líquido quente escorrer entre suas omoplatas._O que aconteceu comigo?_Perguntou, com a voz fraca e recebendo em resposta um sorriso mínimo da demônio.
_Ao seu lado._Gyanna instruiu e, sem pensar, a mais nova obedeceu.
O arfar ficou preso na garganta da adolescente ao reconhecer aquela... Aquela criatura como si mesma, embora não se parecesse em nada com qualquer coisa que ela já houvesse sido.
O cabelo, agora tão negro que fulgurava azulado, ainda continuava rebelde, de certa maneira, mas agora os cachos grossos possuiam forma e estavam entremeados com a cor do inverno. Seus olhos, antes tão verdes, possuíam agora a cor faminta do sangue e do fogo em sua forma primitiva. A pele clara, se possível ainda mais pálida que o normal, embora não pudesse competir com o branco puro da pele de sua mãe, só fazia destacar essas mudanças. Seus traços, seu rosto, seu corpo, continuavam os mesmos. Mas ao mesmo tempo ela sabia que nunca mais o sentiria da mesma forma.
E Natasha entendeu a maior parte de sua dor ao levantar um pouco o olhar em seu reflexo.
As asas.
Ainda presas em algumas tiras do que havia restado de sua camiseta, embora a envergadura de cada uma delas passasse facilmente dos três metros. As asas de cores contrastantes, em tons escuros, que iam desde a cor negra da meia-noite, até manchas que possuíam a cor quente do vermelho em seus olhos e algo prata, frio, em tons metálicos, que pareciam lutar com a maciez que dominava boa parte da parte interna das asas, em tons claros de azuis e as cores do por do sol. Era como ver o dia amanhecer entre uma nevasca. Como ver a noite engolir estrelas da aurora boreal.
_Eu não sou como vocês._A pânico tingiu a voz da adolescente, quando ela se deu conta de que a distorção que via em seu reflexo era a mesma ondulação de cor que havia visto em sua mãe._O que eu sou?_Sussurrou, lutando para não perder o fôlego, enquanto ouvia o próprio coração martelar contra o peito de tal forma que a dor, alguns segundos atrás reduzida a um formigar suportável, começasse a voltar.
_Você é o melhor que há de dois mundos, minha criança._Morte sussurrou para a filha, acariciando seus cachos, gentilmente, enquanto Natasha, ainda encarando o reflexo, observava Ardorys se aproximar novamente, como que hipnotizada.
_Gyanna, as asas dela..._Guerra sussurrou, parando a centímetros de uma das asas da mais nova._As asas de sua criança, sua essência muda._A incredulidade na voz da demônio de cabelos ruivas foi tingida de algo que parecia euforia._É tempo da profecia?
_Não, não ainda._A morena olhou para as gêmeas, que aguardavam a certa distância, mantendo os gatos de Natasha sob controle, enquanto observavam sua senhora, seus olhos alaranjados cintilando de adoração._É o tempo de Nemesis crescer._Declarou, voltando a olhar para a filha, que parecia prestes a desmaiar de dor e exaustão._Descanse, minha criança._Ordenou, lhe dando um beijo cálido na testa.
Sem forças para protestar, a garota sentiu as pálpebras pesarem sobre os olhos agora tão vermelhos e, com certo alívio, permitiu que o véu espesso de sonolência que o toque trouxe lhe envolvesse, a libertando da dor para que pudesse acolher os sonhos.

NêmesisOnde histórias criam vida. Descubra agora