Enfim, Dezembro

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Marcela havia adorado a ideia do show, e cuidara pessoalmente da decoração da Garagem naquele sábado. Forros de um preto fosco cobriam todas as mesas de madeira espalhadas pelo jardim do Coffecult, e pequenas velas dentro de taças iluminavam fracamente os ocupantes.

No palco, porém, a quantidade de velas em recipientes vítreos era quase assustadora. O suficiente para incendiar Roma novamente. Nero aplaudia.

E era ali, no meio de um verdadeiro canteiro de velas perfumadas que eu me encontrava sentado, com o violão no colo e o microfone na altura dos lábios. Do meu lugar privilegiado, via nas duas primeiras mesas os pais de Diógenes e os meus, conversando descontraidamente. Mais atrás, podia ver alguns colegas de sala e conhecidos, onde eu sabia que Marcela deveria estar. As mesas do fundo, porem, ficavam ocultas pelas sombras.

Depois de dar boa noite e me apresentar, eu cantei. E me surpreendi ao ver que minha voz permanecia segura e firme, mesmo diante de tantos desconhecidos.

Comecei com "Marry You", e me deixei levar pelas lembranças da música. De toda a alegria que senti quando a ouvi. Cantei "Eu gosto tanto de você" e "3x4". Cantei "Como eu quero". "When i gone". "Os bons morrem jovens". Todas me lembravam Diógenes, em alguma passagem. Em algum elo.

- Agora eu vou cantar uma música - Eu disse, quando terminei meu repertório - Inédita. Não é de minha autoria mas eu tenho certeza que quem à escreveu estaria muito feliz em ouvi-la aqui, hoje. O nome da canção é "..."

E eu iniciei os acordes que tinha ensaiado com tanto ímpeto nas últimas semanas. Quando cantei, a voz que saiu era minha, mas as palavras eram de Dío. E eu vi, refletido em cada rosto, o quão bonitas elas soavam.

"Quem diria que um sorriso pudesse mudar meu dia

Quem diria que a timidez me atrairia

Quem diria que em algo eu acreditaria

Quem diria que um dia eu sonharia

Então você chegou e acreditou

Me deu uma chance de ter amor

Me notou no amanhecer

Agora, eu juro, meu amor você pra sempre vai ter"

Quando a última corda de meu violão parou de vibrar, o silêncio reinou absoluto por alguns segundos, antes que uma tsunami de fortes aplausos tomassem conta do ar.

Encarei a plateia, e vi os pais de Diógenes com os olhos marejados. Vi meus próprios pais aplaudirem orgulhosos. Vi Marcela no fundo, de pé, com um largo sorriso no rosto...

E o vi.

Em pé, quase no limite onde a luz se tornava sombra.

Ele não aplaudia. Apenas me encarava. O garoto da livraria.

Como um gato coagido, após alguns segundos no qual sustentei seu olhar, ele fez menção de se afastar para as sombras. Não! Eu não podia deixá-lo ir! Mas como o seguraria ali?

Uma ideia me ocorreu em um estalo.

No mesmo segundo em que recomecei a cantar, comecei a tocar desengonçadamente o violão. Só queria prendê-lo ali.

- "Todos os dias quando acordo..." - Ele parou. - "Não tenho mais o tempo que passou. Mas tenho muito tempo. Tenho todo o tempo do mundo..." - Ele se virou e voltou a me encarar. Ele se lembrava. Se lembrava que era com aquela música que havíamos nos conhecido. Mas isso não foi o suficiente para mantê-lo ali. Logo que começou a segunda parte, ele se esgueirou para a escuridão, sem que eu nada pudesse fazer.

Após alguns segundos em que aproveitei meus breves cinco minutos de fama, desci do palco e corri para Marcela. Ela me abraçou fortemente. O tipo de abraço que não se quer mais soltar.

- Johnnie voltou. - Eu disse em seu ouvido, depois de alguns segundos.

Marcela olhou para trás, como se o procurasse, e depois respondeu com voz preocupada.

- É, eu vi. Não se preocupe com isso hoje, Renato, a noite é sua.

Concordei. De fato, a última coisa que eu queria me preocupar naquele dia era quem estava de volta à cidade.

Me sentei na mesa dos meus pais, onde várias pessoas vieram me dar os parabéns. Aparentemente, eu agradava e muito. Bebi moderadamente naquela noite, apesar de minha grande vontade de comemorar. Meus pais estavam ali e eu não podia passar vergonha.

Quando deitei minha cabeça no travesseiro aquela noite, me senti realizado. 

Diógenes ficaria feliz com a homenagem, e ficaria feliz por mim.

Naquele momento, sua presença ali era quase palpável.

Quando acordei no domingo, após uma noite de sonhos conturbados com Diógenes e John, eu só conseguia pensar em uma coisa. Eu sabia onde tinha que ir.

Antes que meus pais acordassem, peguei minha bicicleta e pedalei rumo à árvore das luzes. Já haviam se passado exatos dois meses desde a última vez que fiz aquele trajeto e, naquela ocasião, eu estava com John.

Me sentei no mesmo banco em que sentávamos. Desejei sentir seu braço apoiando minha cabeça. Desejei sentir seu calor. Respirei fundo e olhei em volta: Algumas memórias simplesmente não se vão.

E tenho plena certeza que não se importa quantos anos passem, eu ainda sentirei a presença de Diógenes quando me aproximar daquele lugar.

Fechei os olhos e rezei. Rezei por Dío, onde quer que ele estivesse.

Ainda de olhos fechados, senti a presença de alguém. Senti o deslocamento do ar quando um corpo se sentou ao meu lado. Antes que eu abrisse os olhos, já sabia quem estava ali. Quando ele se pronunciou, só confirmou minha suspeita.

- Eu imaginei que ia te encontrar aqui.

Quase seis meses haviam se passado desde a última vez que ouvi aquela voz, e mesmo assim os cabelos na minha nuca insistiram em se arrepiar. Não pude evitar de sorri quando falei, abrindo os olhos mas sem olhar para ele:

- Quem te contou?

- Meu pai - Disse John - Aparentemente, a cidade inteira sabe. Sinto muito.

Olhei para ele pela primeira vez. Seu cabelo estava mais curto e a pele mais pálida (se é que é possível), o que destacava a vermelhidão de seus lábios estreitos. Aparentemente, Johnnie tinha passado cada segundo de sua viagem enfurnado em uma academia, porque seu corpo deixara para trás todo o aspecto infantil. Será que eu também estava tão diferente em apenas 06 meses? Duvidei.

Assenti aos pêsames.

- Porque voltou tão cedo?

Ele pareceu relaxar, e respondeu com um sorriso frouxo.

- A família de minha mãe é menos amistosa do que pensei. Meu lugar é aqui, com meu pai. - Fizemos silêncio por um tempo. Depois John continuou, com tom cordial. - Você cantando heim? E cantando bem! Quem diria que aquele garoto introvertido fosse se apresentar em público...

Eu ri

- Parte disso é sua culpa.

Fitei as folhas que rodopiavam no vento quente que soprava pela praça. Eu não saberia dizer quanto tempo ficamos sem dizer nada.

- Renato... - Sua voz parecia hesitante - Podemos ser... Hum... Amigos?

Eu sentia algo diferente na voz de Johnnie, e então percebi que eu não era o único coração despedaçado naquele banco. O que havia acontecido na Califórnia, para transformar o garoto que me deixou no homem na minha frente? Ali estávamos nos dois, cada um com suas novas experiências, ambos machucados pelo amor. Ambos querendo, lentamente, se curar e apoiar um no outro.

Concordei.

Estava tudo bem.

Johnnie estava ali.

O Garoto da LivrariaOnde histórias criam vida. Descubra agora