Viver sem Dío era difícil. Pela segunda vez, em todo o ano, eu me sentia lançado naquele mar de sentimentos que era o ensino médio. Sem saber nadar e sem ninguém para me ajudar.
Marcela se mostrou uma amiga exemplar, e no próprio luto de quem perdeu um melhor amigo, reservava um tempo para me ouvir. Não foram poucas as vezes em que, em prantos, me aconcheguei em seu colo em busca de um ombro amigo.
Quando John se mudou, tentei me distrair. Arrumei o trabalho no Coffecult.
Mas agora não. Agora era diferente. Eu não tinha vontade de me distrair. Eu QUERIA pensar em Dío porque eu QUERIA que ele se mantivesse ao meu lado. Dío fazia parte de mim.
Á noite, enquanto dormia, eu revivia sempre o mesmo sonho. A praça. As folhas rodopiantes. O assaltante. Dío.
Dío.
Não demorou muito para que eu tivesse medo de dormir, o que me deu uma aparência péssima de insônia crônica.
Foi mais ou menos na metade do mês de novembro que eu recebi uma ligação inesperada.
Desde que Dío morrera, o meu número parecia ser detido por apenas três pessoas em todo o planeta: Meus pais e Marcela. Então, quando vi um número desconhecido no identificador, cogitei a hipótese de não atender. Mas a curiosidade foi maior.
- Renato? Aqui é Tereza - Meu coração saltou. Era a mãe de Dío - Desculpa ligar assim é só que... Tem como você passar aqui em casa qualquer dia desses?
- Claro. - Assenti, mesmo que a ideia de visitar aquela casa (agora tão vazia) me apavorasse tanto - Algum motivo especial?
- Eu quero te entregar uma coisa. Acho que é o certo.
Mesmo semanas depois, ainda se percebia em sua voz a fraqueza dos enlutados. Qual não fora seu sacrifício em pegar o telefone de Dío e procurar meu número?
Concordei.
Assim, quando saí da escola naquele dia, fui direto até a casa de Dío.
Todo o caminho funcionou como um gatilho para minhas frágeis emoções. Sempre que percorria aquele caminho, tinha por objetivo Diógenes. Hoje não. Ele não estaria ali. Nunca mais.
Toquei a campainha e esperei até Tereza abrir a porta. Ela não me chamou para entrar, mas trazia em suas mãos um pequeno envelope e o violão de Dío.
- Marcela nos contou o que você fez durante o show de talentos - Ela disse, de maneira quase infantil - Deve ter sido lindo.
Assenti, com um meneio de cabeça.
- Então acho que é justo que isso fique com você. - Ela estendeu o violão e o envelope - No envelope tem a música que Dío preparou para o show de talentos. Composição própria, sabia? A única!
Um sorriso frouxo, que esboçava orgulho, se estampou em seu rosto.
- Não... Eu não acho justo... - Eu disse, recuando dois passos.
- Renato, por favor - Pelo seu tom ela já esperava minha recusa - As vezes que vi o meu filho mais feliz foi quando estava com você. Isso não tem preço. Eu não tenho o que fazer com um violão e... A música... Bem, ele ensaiou tantas vezes que eu poderia canta-la para você aqui agora.
Era o pedido de uma mãe que perdeu um filho, implorando para dividir comigo as lembranças. Peguei os objetos e as lágrimas inundaram meus olhos.
- Eu sinto tanto a falta dele.
Tereza me olhou complandecente por alguns segundos. Depois, disse de maneira mais sincera possível.
- Eu sei. Ele sente a sua.
Quando cheguei no meu quarto repousei cuidadosamente o violão sobre a minha escrivaninha. Sentei na cama e encarei o envelope. Um resto de Dío em minhas mãos. Palavras inéditas, que eu nunca tinha o visto usar.
O que dizia?
Eu não estava preparado. Dobrei o envelope ao meio e guardei dentro de Harry Potter e o Enigma do Príncipe, onde estaria seguro até o dia em que me sentisse pronto.
No dia seguinte, contei à Marcela sobre a música.
- E o que dizia a letra? - Ela perguntou aos cochichos, durante uma das últimas aulas de matemática do ano.
- Eu não sei. Não li.
- Porque?- Sua voz denotava indignação.
Suspirei e, quando falei, repeti exatamente o mesmo discurso que havia dito para mim mesmo durante toda a noite.
- Porque quando eu ler a última coisa que Dío me disse - O último resquício original de sua consciência - Eu quero ter certeza que estarei preparado para dar o devido valor.
- Renato, você não entende? Dío não está aqui, mas você está. Você se lembra dele. Ele está com você. - Tentei não demonstrar descrença pela frase típica de autoajuda, em respeito com a vontade nata de Marcela de me ajudar - Diógenes te amou mais do que eu vi ele amar qualquer pessoa... E ele não te abandonaria. Eu tenho certeza que não te abandonou.
Ao fim da aula, me esquivei de Marcela e me sentei sozinho no Coffecult. Pedi um achocolatado. "O de sempre".
O lugar estava quase que completamente vazio, exceto pela garçonete que limpava freneticamente o balcão.
- Você é o garoto que cantou no show de talentos, não é? - Perguntou ela. Assenti com a cabeça. A última coisa que eu queria era puxar papo, mas ela continuou animadamente - Cara, você fez sucesso. Ouvi umas vinte pessoas comentarem sobre isso. Te reconheci porque você já trabalhou aqui.
- Obrigado - Disse, sem ânimo.
- Sabe... O pessoal do Coffecult vive procurando gente pra fazer showzinho aqui na Garagem. Não tem cachê, mas dez por cento do consumo é seu. Pode ser um bom negócio. Você pode até escolher a data.
Não me contive em rir por dentro. Eu? O antissocial Renato fazendo um show aberto? Não me parecia uma ideia muito crível.
Mas bastaram alguns segundos de lucidez para que eu entendesse o que a oportunidade significava.
Um tributo à Dío.
Aquilo sim valia a pena. Ele teria gostado de me ver cantando para uma plateia. Não foi ele mesmo que me ensinou violão e insistiu para que eu tocasse no show de talentos?
- Que tal 11 de dezembro? - Perguntei a garçonete.
Ela consultou o calendário em cima do balcão, enquanto enxugava um copo recém-lavado.
- 11 de dezembro dá num domingo. A gente só faz show aos sábados. Dia dez, o que você acha?
Concordei. Dia 11 faria dois meses que Dío partira, e ele teria uma homenagem à altura.
Corri para casa e comecei a montar um repertório. Não pareceria justo deixar de fora, porém, a letra inédita escondida entre as páginas do Enigma do Príncipe.
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O Garoto da Livraria
DragosteEu sempre me perguntei como seria escrever sobre aquele curto espaço de tempo entre janeiro e dezembro de 2011. O ano em que tudo aconteceu. Quando algo é extremamente importante para a gente, simplesmente não sabemos contar. Não sabemos falar sobre...