INCOERÊNCIA

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Bom seria que a vida fosse feita de flores. Mas não só de dores ela é composta. Há muitos que vivem em mar de rosas, mas experimentam espinhos bem mais cortantes do que os que vivem entre cactos. É certo que em muitas mansões, a mesa é como uma foto de revista. Nela todas as iguarias e delícias que um pobre sonha e se esmera para ter igual. Na sala sofás caros e brancos são suportes para tapetes grossos e macios. No canto vasos de flores que parecem de verdade e quadros que valem mais do que um carro popular. As escadas brilhantes, com mármores raros e corrimãos dourados levam ao andar íntimo como se conduzisse a um lugar mágico. Quartos de se invejar, lençóis limpos e cheirosos, feitos à melhor seda do mercado, colocados em camas majestosas e imponentes. Mas em cima delas, falsos amores, corações em conflitos constantes. Nos banheiros dos mesmos, banheiras imensas que relaxam corpos cansados e angustiados.

Como há diversidades por todos os lugares, naquela mesma cidade, não longe dali, uma pequena casa, onde a modéstia e a simplicidade era a fundamentação. Na sala, um pequeno conjunto de sofás de dois e três lugares, um raque com alguns bibelôs e uma pequena televisão em cima, algumas foto de crianças tiradas na escola, por empresas que manipulam os pais estavam penduradas altas nas paredes, quase chegando na marca das paredes que eram abertas, distantes do emadeiramento e telhas. Em um dos quartos, duas beliches encostadas cada uma em uma das paredes, postadas opostas. Nelas penduradas roupas de todas as espécies e toalhas molhadas jogadas às pressas sobre os lenções surrados e descorados.

Na primeira morava Cibele. Na segunda, Joana. A última trabalhava na casa da primeira.

- Por favor, me traga um iogurte completamente natural, sem açúcar e sem sabor!

Joana que estava postada ao lado da mesa, encostada próxima à parede, completamente ereta e em um belo e austero uniforme de doméstica, pôs-se a obedecer imediatamente à ordem do rapaz que chegara à mesa do café da manhã da mansão onde trabalhava.

- Sim, senhor!

Não era surpresa para ela os paladares variados para o café. A cada tempo, sua patroa mudava de parceiro e, com a mudança, novos gostos para servir. Mas achou inusitada aquela ordem inesperada – totalmente sem açúcar e sem sabor. Correu a buscar o iogurte que Maria tinha feito naquela manhã mesmo. A cozinheira sabia que a dona da casa era exigente com a alimentação e tudo tinha que estar bem fresco e saudável.

Ao chegar de volta à sala de refeições, tratou de servir logo o visitante. Ele balançou a cabeça afirmativamente e ingeriu o conteúdo branco e sem graça com uma cara muito boa. Parecia que provava a maior delícia do mundo, tão era a sua expressão de prazer. Depois, serviu-se de pão integral, entornando mel por cima, acompanhado de uma xícara de café preto, sem açúcar também. Finalizou com algumas frutas. Só então, levantou-se da mesa, pediu que o motorista viesse lhe servir e foi-se sem ao menos despedir-se.

Joana observou-o demoradamente enquanto ele esperava por José, o motorista, sentado a uma poltrona da sala principal. Era um jovem muito bonito. Ele tinha por volta de vinte e cinco anos, não mais que isso. Cibele beirava os sessenta anos. Ele tinha porte atlético, braços fortes, pernas torneadas e músculos bem avistados pela roupa colada ao corpo. O cabelo, em um corte moderno, tinha umas mechas finas em loiro, estava impecável e ele demostrava preocupação com ele, pois virava e mexia, apalpava para ver se estava organizado da forma que arrumara antes. Notou que ele estava agitado, olhando sem parar para seu celular de última geração. Sua boca perfeita era um rito de angústia, apertando sem parar os lábios e também piscando desregulamente os olhos como num sestro. A funcionária não condenava a união deles em função da idade, mas não aprovava a forma como eles a levavam adiante. Era muito diferente de sua vida.

Joana pensou em seu marido, com aquele seu jeito simples, cabelo cortado baixo em estilo clássico, com roupas desgastadas e pobres, beirando seus quarenta anos, mas com um sorriso tranquilo e sincero. Era o que lhe bastava. Sentia-se feliz e realizada. Era um bom pai, sempre presente na vida dos filhos, brincava com eles de bola na rua como se criança fosse também. Marido cortês e carinhoso, sempre atento a ela, ajudando nas tarefas domésticas quando ele via que ela chegava muito cansada. Quando ela se mostrava desanimada, lá vinha ele com uma cervejinha gelada, tentando animá-la e deixa-la um pouco feliz. Era perfeito para ela, estava do tamanho certo para sua vida.

Não demorou muito e Cibele descera para o café. A mesa impecável, mas ela se serviu de café preto e, no prato de apoio, colocou uma fina fatia de queijo branco. Estava pensativa. Os olhos perdidos no tempo. Linda em sua camisola branca e seu robe rendado e transparente por cima. Era possível ver o corpo malhado, bem cuidado com cremes e massagens. O cabelo, bem liso e loiro, circundava o rosto todo trabalhado em plásticas e aplicações botulínicas, caia abaixo do ombro, lindamente sedosos. Àquela hora, ela não se permitia descer as escadas sem maquiagem. Não sabia Joana se era a mesma da noite de ontem ou se a retocara antes de descer para o café.

- Joana? – chamou Cibele impositiva.

- Sim, senhora. – respondeu prontamente a empregada que se mantinha a distância curta da patroa, esperando por qualquer ordem que dela viesse.

- Afonso foi já tem muito tempo?

- Não, senhora. Faz mais ou menos uma hora que ele se foi com José.

A mulher nem respondeu. Voltou a seu estado catatônico, sorvendo de vez em quando o café que esfriava na xícara. Parecia que algo a preocupava, mas não podia dizer o que. Certamente ela teria várias preocupações. Mas naquele dia, ela não fora à empresa, nem ao menos se entregou aos exercícios físicos que sempre lhe animavam. Não quis almoçar e mais tarde pediu um lanche no quarto.

O dia estava findando e Joana preparava-se para ir embora. Entrou no luxuoso quarto para ver se a patroa ainda queria alguma coisa. Ela ainda estava deitada, numa depressão profunda, rodeada de todas as coisas que lhe poderiam encher de graça. Viu lá a rica bandeja do lanche que levara algumas horas antes, com muitas iguarias, ao lado da cama, quase intocada. Nem ao menos respondeu à empregada que notou que seus olhos estavam inchados de tanto chorar. Esperou um pouco e nada de resposta. Então, fechou a porta respeitosamente. Iria embora, estava muito cansada. Precisava ainda ir para casa e preparar o jantar das crianças.

Mais de uma hora na condução, chegou a sua casa e os três meninos vieram encontrar-se com ela ainda na rua, pularam nela de uma só vez, quase a derrubando no chão. Ela foi quase carregada para dentro. Lá, já lhe esperava o marido adiantando o jantar. Olhou-o à pia.

- Pode picar as salsichas, amor? O macarrão já está quase no ponto.

Ela o beijou levemente, pegou um avental, amarrou os cabelos suados, abriu uma cerveja gelada, aumentou o volume do rádio e começou seu turno na segunda função, feliz da vida que tinha. 

A dor enquanto ama - Em ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora