A queda das primeiras folhas anunciando o outono trouxe-lhe alguma alegria. Agradava-lhe os dias frios e nublados do outono. A sombra que pairava sobre seu coração não lhe permitia muito, no entanto. Sentada à janela contemplava a estrada pela qual vinha ao longe um viajante. Talvez devesse ela mesma lançar-se ao mundo, pegar a estrada sem olhar para trás, mas o cotidiano a tinha presa o bastante para mantê-la em casa. Embora seu espírito ansiasse por aventuras, havia pó a ser removido e louças para lavar. Uma rotina havia tomado conta dela de tal modo que sabia não ter forças no momento para lutar contra ela. O que mais deseja? Perguntava-se sem saber o que esperar. Não sabia bem o que o incômodo interno que sentia desejava. Por vezes podia até mesmo sentir raiva deste sentimento mas desde cedo logrou dar voz ao que emanava de si, de modo que se permitia sentir. Sempre haveria de permitir. De certo modo até mesmo o peso que sentia em sua alma lhe era autorizado por ela mesma.
Não é de se esperar que tal fosse percebido por seus pares. Sua pele viva, as bochechas vermelhas e o cabelo loiro eram vistosos, em seu olhar podia-se perceber um tom de desafio e conquista cercado por sobrancelhas bem delineadas. Os seios não tão fartos mas destacados e, a cintura fina, marcavam-lhe a figura. Naquele dia, mais triste que de costume, decidiu ficar em casa e fazer chá. Sentia certo prazer secreto em sentar-se à janela com uma xícara e encarar a estrada. Exceto nos dias em que havia muita agitação, achava as pessoas enfadonhas, com raríssimas exceções.
Sentada contemplando, como se algo estivesse para ocorrer, atravessava as horas como se estas não tivessem fim. Sua solidão não duraria muito mais no entanto, seu coração já antecipava. Logo estariam em casa e sua melancolia se recolheria para o profundo de si mesma. Nem sempre para dar lugar à alegria, mas à uma felicidade operacional, de modo que pudesse levar os dias sem que fossem muito penosos.
Arrumava o vestido e os cabelos como se posasse para um pintor. Os pequenos prazeres deste mundo ela os conhecia bem: sua feminilidade - agressiva e sensual - poderia desprezar os galanteios tolos que recebia, isso não lhe tiraria a vaidade, no entanto. Sentada a mirar o horizonte esperava os dias cinzas de outono.
Quando acendeu o fogo tarde já era, em meio ao escuro, viu os últimos raios de sol se pôr. Queria que a vida que sentia fosse ceifada vagarosamente como aqueles raios, mas que disso resultasse um espetáculo do qual pudesse se deleitar. Daria sua vida grata se alcançasse, ainda que no último momento, aquele êxtase Divino. A chaleira apitou e a despertou, como que tirando-a de um transe. Aproximou-se do fogão. A água não parecia ferver. Sem entender, continuava a ouvir o som da fervura. Tanto barulho por nada. Morna, morna como aquela casa e aquela vida, pensou. Há um calor no ninho que acolhe mas não o bastante. Suficiente para manter vivo o organismo, mas uma mornice que beira à doença, sem dela nunca desgarrar por completo. Pôs a mão na água, morna, como suspeitava, ainda que borbulhasse. Fitou-a sem entender, sem se dar conta das lágrimas que lhe escorriam pelo rosto. Tornou a colocar a mão. Nem percebeu quando o corpo vacilou e desmaiou.
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Canção de Outono - Parte 1 - Outono Vermelho
Roman d'amourA queda das primeiras folhas anunciando o outono trouxe-lhe alguma alegria. Lhe agradava os dias frios e nublados do outono. A sombra que pairava sobre seu coração não lhe permitia muito no entanto. Sentada a janela, contemplava a estrada pela qual...