Outono

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O sol se pôs numa tarde de domingo e voltou tímido no dia seguinte. Não brilhou como antes, permaneceu escondido nas nuvens, seus raios eram então bem agradáveis e mais de uma pessoa sentou-se na praça para se aquecer, mas aquele dia durante a tarde choveu. Uma fina e calma chuva de outono.

Há sempre algo nos dias de chuva. O convite para o profundo de si é sempre mais forte em um dia chuvoso. Mais de um homem procedeu a um exame de si mesmo aquele dia. Jean em posição meditativa no centro da sala, sozinho, também buscou seu interior. Não se deixou levar por rancores, nem julgou seus pares. Ficou em posição meditativa e após ver o pensamento correr por coisas recentes, por planos e ideias entrou finalmente em si. Estava contente consigo mesmo e deixou este contentamento se espalhar por todo o seu corpo.

O mistério do ser lhe fora desvelado anos antes. Não na forma de uma doutrina, um conjunto de informações ou teses, mas na forma de uma postura diante do mundo. Não houve êxtase e nem grandes mudanças quando isso aconteceu como pode imaginar o leitor. Não se trata de uma porta para outro mundo que subitamente é aberta, mas sim de uma peça importante que é posta numa longa cadeia não linear de passos. Não, não se trata da última peça. A vida não é uma teoria para que possa ser enquadrada e compreendida desta maneira. Ainda assim aquela foi uma peça importante, fundamental. Estar naquela posição onde o mundo não podia afetá-lo muito, sem deixar de abandoná-lo ou abandonar as esperanças demandava muito. Mais de uma vez fora surpreendido e derrubado dela. Peregrinar por diversas cidades e expor-se ao novo daquela maneira foi uma forma de se fortalecer. Ver a sabedoria se manifestar aqui e ali ainda que de forma frágil deu-lhe esperanças.

Tanto tempo longe de casa fez dele um estrangeiro em todos os lugares. Não conseguia receber mais o abraço e aconchego da terra natal. Estranharia tudo e nada lhe soaria familiar. Um preço que teve que pagar. Em pose meditativa e de olhos ainda fechados não ignorou a presença da moça do chá. Haviam conversado algumas vezes, mas não sabia seu nome. Seus olhos treinados reconheceram de imediato uma tristeza nos olhos dela. Já quase havia desistido de encontrar algo interessante nestas bandas.

Muitos caminhos levam à abertura e postura diante da vida que ele buscava. Ela o havia encontrado, não por dificuldades, já que tivera uma vida fácil. Deve esperar mais do mundo, deve esperar alguém que lhe possa fazer frente, alguém que possa admirar não apenas pelo caráter ou bondade. Alguém com quem pudesse trocar olhares como que dizendo: eu também percebi. Eu também entendo. Deve ver alguma verdade nas artes. Ela o observa, sentada. Ainda assim ele a imaginava sentada à mesa com uma xícara de chá batendo a unha na xícara distraída enquanto pensa. Mira o chá, mas longe está o pensamento.

Devo ter crescido em sua mente imagina. A curiosidade que a traz aqui. Deve esperar a hora em que vou lhe revelar algo que me faça caber em seu mundo e então se conformar dizendo, é claro que não podia ser real. Não pôde deixar de notar a força de seu pesar. Era verdadeiro. Há um peso em seus olhos, um cansaço dos dias. Atravessar os dias sem um único acontecimento decente não é tarefa fácil para os espíritos despertos. No entanto a sabedoria triunfa e há nela todos os elementos para um encontro. Não um mero encontro, onde conversamos sobre amenidades sem realmente tocar a outra pessoa, mas um encontro real. E só eu posso dá-lo _ pensou. No momento só ele podia lançá-la nas estruturas que ela tanto desejava.

Antes mesmo de abrir os olhos sabia que ela o olhava. Não estaria distraída a olhar as unhas ou batendo o pé impaciente. Nem insatisfeita com o silêncio. Em tudo lamentava apenas não poder tocá-lo. Então seus olhos se encontraram. Nada sonolento, aqueles olhos vivos a estremeceu. Havia algo diferente neles agora.

__ Sua presença inundou-me o pensamento desde que chegou. Minha última reflexão foi sobre você _ disse ele.

__ Não acredito que possa te interessar a este ponto _ disse ela de modo meio brusco. Havia uma franqueza naquela hierarquia que ela estabelecia que o deixou pensativo. Todos os seres humanos são igualmente dignos de atenção pensou, nada disso falou, no entanto.

__ Eu já teria partido, não fosse você ter aparecido. A maneira como a vida pulsa em você me interessa muito. Ela ficou confusa, não sabia bem o que entender por aquilo. Já há algum tempo não sentia muita vida em si mesma. Ao perceber seu olhar confuso ele explicou: ainda que não pense haver vida em você, sua tristeza parece brotar de uma vontade de viver. Não simplesmente existir, mas ser realmente. Sofre com as limitações do mundo que a cerca. Deseja viver muitas coisas. Após ouvi-lo mirando sua boca, disse: __ Você não deveria saber estas coisas.

__ Os sábios sabem muitas coisas que vos os leigos ignoram. Há alguma virtude em saber sem dúvida, mas não devemos superestimar o conhecimento.

__ Você parece triste _ disse ela. Não havia percebido antes como o percebo agora. Disse que perdeu algo precioso. O que houve em seu passado?

__ Se vamos mesmo ter essa conversa eu farei um chá primeiro _ disse ele indo para a cozinha.

Canção de Outono - Parte 1 - Outono VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora