Voltou da cozinha com duas xícaras. Entregou-lhe uma e sentou-se próximo à janela com a sua. Após fitar a estrada e provar do chá voltou-se para ela. Sorriu. Era a primeira vez que sorria. Ela gostou do sorriso dele e então passou a mirar seus lábios. Ele apenas olhava e continuava sorrindo.
__ Há algo de estranho em toda essa cena, mas gosto disso. Normalmente eu não teria deixado uma mulher casada atravessar tantas portas. Manteria sempre uma barreira.
__ E por que me deixou atravessar?
__ Atravessar é uma boa palavra para descrever. Há algo em você que me deixa intrigado.
__ O que?
__ Há uma tristeza em seus olhos. Algo muito dolorido, muito verdadeiro. Você não parece ter motivos para essa dor no entanto. Me pergunto que tipo de experiências a levaram a este estado.
__ Nem sempre sou triste. Tenho estado assim porque ando cansada. Não entendo o porquê deste interesse em mim.
__ Você é uma mulher bonita. No entanto essa aparência não foi suficiente para inflar seu ego e nem para te despertar para os jogos que a sociedade joga. Mulheres como você costumam ter seus desejos atendidos de modo fácil e se encantar com o mundo. Há muito para você nele. Há tanto que podia ser e fazer. Por que o mundo não te bastou?
__ Consegue ver tudo isso em meus olhos?
__ Deduzo isso de muitas fontes e devo dizer que não é a única a sofrer de tédio. Em seus olhos eu vejo alguma cobiça.
__ Estamos falando de mim, não de você. O que faz aqui?
__ O que eu vim fazer antes é irrelevante. No momento é sua presença que me prende aqui.
__ Por que? O que pretende? Disse ela com o busto arfando. Todo o corpo pulsava e havia uma vontade de tocá-lo e sentir seus lábios, mas ele parecia imóvel.
__ Como disse, você me intriga. Quero entender a razão de seu sofrimento, se você me permitir. Nisso se levantou e pôs a xícara sobre a mesa. Sentou-se próximo à ela com os olhos fixos no dela.
__ Parece haver em seu olhar algo além das palavras que diz _ disse ela.
__ Talvez haja _ disse e continuou olhando-a. Imagino que deva fazer algo artístico. Posso te imaginar fazendo algo artístico.
__ Eu danço _ disse ela, mas na verdade ficou pensando que tipo de coisa devia ele imaginar a seu respeito.
__ Curioso...
__ Por que?
__ Há na dança uma leveza que agora não vejo em seu espírito.
__ Eu não danço mais. Não danço desde que... desde que... enfim, não é importante. Nisso a porta se abriu e Medeiros voltou, caminhava alegre e de braços abertos. A barriga proeminente projetava-se a frente. Chegou levemente suado e pôs-se a se abanar, sentado.
__ Ainda aqui! Fico feliz que tenha se dado bem com Jean. Absorva o que puder, ele sabe muito. Medeiros não pôde deixar de notar uma melhora nela. Sua atenção havia encontrado algo digno dela o que provocou uma mudança visível em seu humor. Gostaria muito de poder dizer que tal devia-se aos seus chás, mas não podia se permitir essa extravagância. Não com ela. A queria como a uma filha e seu coração sofria junto com o dela. Naquela manhã a achou ainda mais alegre que o normal. Contagiou-se com a alegria dela, mas ao vê-la e preparar para ir e após Jean haver saído da sala, ao se despedir, ainda que lhe doesse o coração não pôde deixar de dizer:
__ Lembre-se da natureza dos peregrinos. Tal não era necessário pois que ela estava ciente de que o peregrino podia desaparecer a qualquer hora. Mas agora estava vivendo todo um mundo que esteve guardado dentro dela durante muitos anos. Conseguia dar vida e compartilhar sua alma de uma forma mais completa. Ele a permitia isso. Não podia acreditar que ele simplesmente desapareceria. Não sabia bem o motivo, mas tal roteiro lhe parecia improvável. Certas coisas são fortes demais para não serem disse ele uma vez. Assim ela esperava um fim a este roteiro já que a situação não poderia ser sustentada muito tempo, mas não acreditava neste fim de modo que quase o ignorava. Apenas as vezes quando os demônios a cercavam e pareciam roubar-lhe as últimas gotas de esperança, então se permitia sondar de modo mais distante toda a situação. Livre dos laços emocionais dado o peso da angústia sobre sua alma então podia vê-lo partir, como tudo parte um dia. Mas mesmo em seus momentos mais emotivos guardava suas dúvidas. Não esperava largar tudo e viver com ele. Sua curiosidade feminina queria saber o que mais ele podia despertar nela. Tudo aquilo clamava por um desfecho. Talvez então pudesse experimentar algo forte o bastante para a mudança que parecia se anunciar, mas nunca chegar em sua vida.
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Canção de Outono - Parte 1 - Outono Vermelho
RomanceA queda das primeiras folhas anunciando o outono trouxe-lhe alguma alegria. Lhe agradava os dias frios e nublados do outono. A sombra que pairava sobre seu coração não lhe permitia muito no entanto. Sentada a janela, contemplava a estrada pela qual...