A Dançarina

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No dia seguinte ela não apareceu, embora as nuvens cinzas e a chuva fina anunciassem sua presença. Foi enquanto pintava e olhava para o portão da janela vez ou outra que viu entrar uma borboleta, fugindo da chuva. Pousou no parapeito da janela, abriu e fechou suas lindas asas vermelhas algumas vezes. Havia algo em toda aquela cena que o deixou perplexo, parou de pintar e pôs-se a olhar. O inseto virou algumas vezes, e abriu e fechou as asas novamente. Ele demorou um pouco a perceber que aquele era exatamente o tom de vermelho que buscava. Passou o dia pintando e aquela tarde não pensou mais nela.

Ela também não apareceu no dia seguinte. Medeiros embora ainda feliz com a festa, preocupou-se.
__ Ela estava tão bem. Tem certeza que não aconteceu nada? __ perguntou me uma vez mais.
__ Nada, nada que justificasse isso. Ela ficará bem.
__ Até o próximo desmaio. Vou vê-la amanhã se não aparecer. E você evite problemas, ela é uma mulher casada e já tem problemas suficientes.
__ Tenho me mantido distante, como lhe prometi. Não deixarei que nada aconteça.
__ Isso se ela voltar a vê-lo, acredito que espera por você.
__ Se este for o caso nosso jogo chegou ao fim, não vou procurá-la se é isso que deseja.
__ Probre criatura...
E lamentando-se saiu a rua. Não havia passado muito quando ouviu sua risada gostosa, Medeiros já havia se entretido em uma conversa com alguém na rua, certamente. Jean deixou escapar um sorriso, realmente o doutor não tinha vocação para a tristeza, parecia mesmo encarar a tristeza dela como a presença metafísica do mal, algo que havia de ser eliminado. Poderia tê-lo dito que não acreditava que devamos remover de nós todo e qualquer possibilidade do mal. Podemos precisar dele. Poderia dizer que não a concebe como o ser indefeso que ele parece ver nela, mas preferiu o silêncio.

Após terminar seus afazeres trancou-se no quarto novamente para pintar. A obra que concebia fluía e por estes dias pintou bastante, trabalhou em diversos esboços e não demorou a perceber que uma figura feminina insistia em aparecer em seus desenhos. Tanto aconteceu que finalmente cedeu e aceitou trabalhar com ela. Um pouco a contragosto, mas com dedicação. O desenho ganhava forma e os tons que buscava alcançar lhe agradavam, no entanto depois de algum tempo perdeu a motivação e não soube o que pintar.

De manhã ajudava Medeiros com os pacientes, de tarde pintava, de noite lia, saia pouco a rua.  Sem conseguir pintar, um dia resolveu dar uma volta pela cidade. Pensava em se despedir já que nada o prendia a ela.

Há anos buscava catalogar manifestações da sabedoria e viajava de cidade em cidade buscando situações e pessoas em quem a vida poderia ter se manifestado de maneira singular, pessoas que por um motivo bom ou ruim, geralmente ruim, haviam desenvolvido uma percepção singular da realidade, ou lidavam com as passagens da vida de um modo especial ou simplesmente em um momento de iluminação haviam vislumbrando algo da estrutura da realidade. Estes seres que tiveram contato com a sabedoria lhe interessam a fundo. A tristeza que viu nos olhos dela pareciam iluminados por uma dor profunda. Tal dor não adivinha de experiências comuns. Não. Ela conseguiria muito do que deseja simplesmente com sua aparência, tal dor vinha do fundo. Não era algo simples, tosco e sem cuidados. A sua maneira havia sido lapidado por ela, tomado forma, havia sido até mesmo cuidado e protegido do mundo como algo de valor. Uma marca que lhe permitia se sentir superior de alguma forma, mas também um fardo. Sentado em um banco do centro a contemplar o pôr do sol decidiu-se. Embora houvesse sabedoria nela, era hora de partir. Depois das festividades do solstício de inverno partirei _ decidiu-se mentalmente.

O Outono chegara, os dias tornaram-se frios e cinzas. Aqueles que antes falavam do calor, agora maldiziam o frio. Alheios ao que viviam nossos protagonistas a vida seguiu seu curso sem nenhuma pausa para reflexão não quis saber de planos e caminhou implacável sobre o sofrimento dos homens. Aqueles de maior discernimento viam nisso um sinal, a passagem inexorável do tempo trazendo vida e morte, a presença da vida humana tendo o tempo como Horizonte, ainda que disso pudéssemos nos esquecer.

Desde há muito tradições foram criadas para marcar essa passagem. Trocando a estação o vilarejo todo se preparou para uma festa. O espírito Alegre de Medeiros mal podia esperar, não falava de outra coisa. O solstício de inverno era celebrado pela comunidade com uma grande festa no centro. Todos levaram comidas típicas das frutas da estação e diversas tendas com jogos eram montadas para as crianças e adultos. Reuniram se todos numa tarde nublada, havia chovido pela manhã, havia algo pesado no ar, como que convidando ao silêncio, mas era uma tarde Alegre. Muito se conversou, comeu e se disse aquele dia, por fim músicos foram chamados e o povoado alegre dançou. Por fim, já tarde uma figura de vermelho, de pernas torneadas e cintura fina pôs-se a dançar. Lá estava ela esbelta em seu traje de dançarina. Leve, como a folha atirada ao rio. Mais de um coração encheu-se de alegria com sua dança aquela noite, mas apenas a um deles era ela destinada. Pois que dançara para ele. Neste dia como estava acompanhada do marido não se falaram. Quando já tarde se recolheu, dormiu com a imagem dela lhe queimando o coração.

Canção de Outono - Parte 1 - Outono VermelhoOnde histórias criam vida. Descubra agora