Quando o viu aquela manhã, ele pintava. Na verdade, misturava as tintas. Ainda sem se virar disse: há um tom de vermelho que posso visualizar, mas nunca consigo alcançar. Não sabia que pintava disse pondo se a observar os quadros a sua volta. Havia paisagens e animais, objetos e cenas cotidianas. Aqui e ali reconheceu um e outro lugar do vilarejo. É só uma forma de canalizar um impulso e limpar a mente. Você sabe como é, deve acontecer algo semelhante na dança. Sei sim disse ela distraída segurando um dos quadros. Neste o retrato de uma jovem em seus vinte anos, os cabelos pretos caindo sobre os ombros e um olhar que ficava entre o infantil e o sensual. Usava uma veste de seda deixando parte dos seios delicados a mostra. As mãos pequenas tocavam o cabelo e havia em seu sorriso um misto de insegurança e ousadia. Estava feliz, num daqueles sorrisos que escapam vindos do mais profundo de si. O tecido permitia ver todas as suas curvas, a cintura fina e as pernas torneadas. Um pé delicado apoiava-se numa cadeira de tecido roxo em uma sala luxuosa. Ela é bonita. Deve ser uma pessoa interessante pra ter te cativado a este ponto. Quem é ela?
__ Sara me ensinou a dançar. Nos amamos por um tempo.
__ O que houve?
__ Uma vez que me amava e sabia que eu a amava ela me deixou. Havia completado seu jogo.
__ Não faz sentido.
__ Era a responsável por ensinar-me os encantos do sexo e amor. Seduziu-me como ninguém antes havia feito, tornou-se senhora do meu coração e de minha atenção, ainda que no processo tenha sido obrigada a entregar o seu. Mesmo nos momentos mais íntimos ainda dizia não conhecer meu íntimo, mas que conheceria um dia. Por fim quando já nos amávamos, anunciou que se afastaria. Só então ela esperava conhecer minha essência. Uma vez amando e abandonado o que eu faria? Compreendi seu jogo e mostrei-lhe minha determinação, como ela esperava que eu fizesse. Nunca voltamos a nos falar no entanto. Não havia essa opção pra ela.
__ Como sabe que ela te amou?
__ Há algo nos olhos e no olhar que revelam. Quando se está em contato profundo com alguém não há como não saber. Eu já era então um mestre de disfarces e de retórica. Eu podia ver claramente seu interior, tal ela me permitia.
__ Você consegue ver algo assim em mim? Consegue olhar pra dentro de mim dessa mesma maneira? Se sim, o que vê?
Enquanto ela falava, ele caminhou alguns passos em direção a ela, ficando bem próximo. Pela primeira vez entrou em seu espaço vital, esteve ao alcance da mão e da boca. Mas não foi a presença física dele ali tão próximo de seu corpo que a estremeceu. Foram os olhos que fizeram seu corpo se arrepiar, que fizeram secar sua boca e despertou-lhe aquela súbita tomada de consciência.
__ Há desejo em você e uma curiosidade pelo toque. Mas o que pulsa em você não é amor. É outra coisa _ disse sem cerimônia enquanto a encarava. Pulsar era mesmo uma boa palavra, pois que todo o corpo dela pulsava agora. Ansiava por um toque que não aconteceu. Seus olhos se encontraram, ele oscilava entre olhar seus lábios finos, os contornos de seu rosto e os olhos. Ela parecia fazer o mesmo enquanto o desejo de que falara incendiava-lhe os sentido. Por fim um sorriso esboçou-se no lado esquerdo do rosto dele, como que revelando a contragosto o desejo que nutria por ela, ou assim ela o entendera. Lá fora o mundo seguia, alguém serrava, um outro gritava, mas aqui só havia eles. Em silêncio, olhando. Ela não entendia porque ele não a tomava nos braços, porque não a beijava pois parecia deseja-lá. Ainda que fosse orgulhosa era invadida vez que outra por uma insegurança, o que a deixava com raiva, dela e dele. Tome-me em seus braços e faça me sua, seja meu. O desejava, mas permaneceu imóvel. Teria arrancado o de sua mente, mas o suspiro que ouviu convenceu-a de que ele a desejava. Sorriu, como ele também sorria. Fale-me de suas pinturas _ disfarçou.
__ Preciso terminar um trabalho.
__ Posso ficar e vê-lo trabalhar?
__ É tentador, mas muita distração. Nos vemos amanhã?
__ Tentarei vir.
__ Espero que sim. Aproximou-se e a abraçou. Apertando seu corpo contra o dela, que fez o mesmo. Aquele foi um longo abraço. Por fim se despediram.
Ponha um casaco _ disse ele. Está frio lá fora.
__ Está sempre frio lá fora - disse ela dando de ombros e se fechando sobre si mesma.
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Canção de Outono - Parte 1 - Outono Vermelho
RomanceA queda das primeiras folhas anunciando o outono trouxe-lhe alguma alegria. Lhe agradava os dias frios e nublados do outono. A sombra que pairava sobre seu coração não lhe permitia muito no entanto. Sentada a janela, contemplava a estrada pela qual...