DOIS

41 1 0
                                    


     – Obrigada pela carona. – Lilith sibilou com ares envergonhados. Suas pernas estavam unidas, como se não estivesse à vontade naquela ocasião.

Tentei interagir com perguntas. Ela não havia falado sobre si em nenhuma parte dos nossos diálogos até aquele momento.

– E então, você ficou esse tempo todo longe daqui?

Ela não soube reagir a pergunta. Parecia apavorada.

– Longe da cidade, digo. – Completei.

– Ah, em partes. – Acabou por titubear. – É, sim. Fiquei.

– E decidiu voltar...?

Deixei a pergunta no ar pra que ela me dissesse o porquê do retorno. Não houve resposta imediata. Resolvi insistir.

– Trabalho, família...

– Basicamente isso.

O tom reticente de suas respostas parecia imutável.

Eu estava sendo um babaca egoísta tentando forçá-la a continuar. Eu já me preparava emocionalmente para desistir.

– Meu avô acredita que eu sou o melhor destino pra empresa da família. Então, eu voltei.

Para minha surpresa, ela falou. E soou mais como um desabafo descrente sobre algo que ela não detinha escolha.

Menos um tijolinho.

Ao pararmos no primeiro semáforo, já estávamos em silêncio. Foi involuntário observá-la de soslaio. As mãos, fechadas sobre os joelhos, tremiam discretamente. O alto das bochechas continuava corado. Mas eu me perdi ao prestar a atenção nos lábios dela. Minha mente acessou a lembrança do formato que eles ganhavam quando Lilith usava batom. Ficavam exatamente como o de um coração.

Será que ela se lembrava daquela noite?

Limpei a garganta assim que troquei a marcha do carro, na tentativa de quebrar o silêncio.

– Você está com frio?

Num repentino ímpeto automático, recolhi uma de suas mãos. O contraste da temperatura a fez dar um espasmo rápido de surpresa.

Condenei-me severamente. Eu estava fora de controle. Tocar nela assim?

Mas ela não afastou-se como eu imaginei que fizesse. O toque durou tempo suficiente para sentir a pele gélida, com os ossos dos dedos bem demarcados sob a pele.

– Garota, você está congelando. – Foi tudo que consegui dizer, cessando com o toque não autorizado.

Ela riu sem jeito, evitando meu olhar. Parecia desconcertada demais.

– Me desculpa, eu... – Ela riu, aparentemente de nervoso.

– Desculpas pelo quê?

– Acho que não estou num dia muito bom. – Seus olhos me alcançaram por um instante e se esquivaram logo após, encabulados.

– Vamos aquecer você. ­– Sorri, tentando acalmá-la. Liguei o aquecedor do carro rapidamente.

Lilith me deu as coordenadas para o destino que ela queria e em pouco tempo chegamos. Não consegui ultrapassar a conversa depois que eu a toquei. Foi como se voltássemos à estaca zero.

Ela pediu que eu a deixasse na frente de um edifício comercial. Era um empreendimento novo, a placa da construtora ainda anunciava unidades a venda. Estacionei o carro junto a vaga de visitantes com uma calma exagerada. Aquele momento de despedida me deixou tenso. Alguns seguranças da área da garagem encararam o carro com certa desconfiança. Um em especial observou quem estava no banco do carona. Parecia que ele a conhecia.

DIANTE DOS SEUS OLHOSOnde histórias criam vida. Descubra agora