UM

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Eu só conseguia pensar na janela do meu quarto enquanto a voz do outro lado da linha ecoava distante em minha cabeça. Aquela maldita janela.

Com a tempestade prevista para aquela manhã, e o céu se decompondo em uma onipresente nuvem escura, fatalmente encontraria o quarto inundado. E encontraria Boris, sempre indiferente, sobre a cama, com o corpo em uma posição imperial, durante seu sagrado ritual de limpeza.

"Não esqueça de abrir a janela para o Boris sair. E cuidado para não deixar o coitadinho pra fora de casa. Deixe aberta."

Aquele maldito gato.

– Seu pai está, John?

Deixei a revolta e as lamentações de lado e finalmente dei atenção à senhora Perez ao telefone.

– Na verdade, não. Ele teve que fazer alguns exames agora cedo.

– Aconteceu algo?

– Rotina, não se preocupe.

Bem, você deve saber que ele esteve aqui na semana passada, mas o quarto do Henry continua com o mesmo problema.

Apoiei o telefone ao ombro e cocei o dedo com afinco, bem em cima da marca do anel.

– Sim. Ele me contou sobre o isolamento.

­– Acho que ele vai precisar voltar pra dar uma olhada. Sabe como é, Henry acabou de passar por uma crise de bronquite e...

O barulho do sino acima da porta de entrada da loja ressoou alto, fazendo minha percepção acender num rompante.

À minha frente, entrava uma garota alta, de sobretudo felpudo, sacolejando o guarda-chuva. O sobretudo fez sua silhueta parecer maior, mas bastou que ela girasse os pés pra dentro da loja e afastasse os cabelos da nuca pra fora do casaco, pra que minha mente fosse invadida por um milhão de memórias. Simultaneamente. Como uma explosão silenciosa.

Eu não acreditei.

Os mesmos olhos me encararam e numa fração de segundo, senti como se um mundo paralelo se materializasse a nossa volta.

Eu conhecia aquele garota.

Que agora era uma mulher. Os traços audaciosos continuavam ali. O olhar lânguido e misterioso também.

Aquele olhar.

E eu ali, diante dele, sem conseguir dizer uma única palavra.

A voz do outro lado da linha emudeceu-se.

Mas na real foram meus ouvidos que a bloquearam.

Ela ergueu uma sobrancelha, cautelosa, ligeiramente melindrada.

Não consegui disfarçar a surpresa ao vê-la, e isso claramente a alarmou. Recompus-me e instantaneamente ouvi.

John? Você tá me ouvindo?

– Oh, sim. Direi ao meu pai pra estar aí mais tarde.

Mais tarde não, John. Como disse, só estarei aqui amanhã de manhã.

­– Certo. Amanhã de manhã.

Devolvi o telefone ao gancho com uma calma exagerada após me despedir.

DIANTE DOS SEUS OLHOSOnde histórias criam vida. Descubra agora