SETE

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Madre não está mais usando sua aliança. Preocupo-me por um instante em saber se isso é recente ou se demorei tempo demais até perceber.

Ela está fervendo água pra fazer chá. Da bancada da cozinha, vigio as mãos finas finalizarem o processo com sua destreza habitual. Ela me pergunta sobre o desfecho da reunião daquela manhã e eu simplesmente digo que não há nenhum, por enquanto. Alguns documentos estavam incompletos e serão refeitos em breve, informo.

No momento em que ela se vira para trazer as xícaras, vislumbro que restou apenas a marca do anel em seu dedo.

– Você... parecia aflita ao telefone. Devo me preocupar?

– Acho que não. – Tento sorrir, recolhendo minha xícara e aquecendo-me com a cerâmica escaldante. – Só... estava receosa com sua reação. Você não tinha lido as duas mensagens que enviei. Por um momento cogitei que não queria me ver.

Madre sentou-se às banquetas altas da bancada.

– É difícil você se desligar desse sentimento, não é? De estar sempre sendo abandonada.

– São tempos difíceis. Para nós duas, presumo. – Encarei sua mão e ela seguiu meu olhar, percebendo instantaneamente.

– Teve que acontecer. Só estávamos adiando o inevitável.

– Você está bem? Benjamin está bem?

– É estranho para ambos, confesso. A gente consegue enxergar o quanto se agarra a um status. Uma condição. De repente você só precisa fazer mesa pra uma pessoa, se acostuma a marcar divorciada no questionário do convênio médico ao invés de casada, compra apenas uma entrada pro teatro e tem que desativar as notificações do site de compras coletivas, porque Deus, é torturante ficar recebendo promoções de programas pra casais o tempo todo. – ela riu enquanto levava a caneca à boca.

– Você já tomou sua decisão?

Fiz a pergunta temendo sua resposta. Não havia planejado chegar àquela questão tão diretamente. Mas saiu. Como um gatilho disparado acidentalmente antes do tempo. A mente soube reproduzir o som dentro da minha consciência. E como se não bastasse o misto de tristeza, impotência e culpa, agora eu sentia o gosto amargo do arrependimento por ter trazido o assunto à tona.

Eu sempre soube que Celina – a quem acostumei chamar de Madre desde a infância – aprontaria suas malas e se despediria da vida naquela cidade assim que se divorciasse. Afinal, o fim do seu matrimonio com tio Ben não lhe acrescentaria muito; apenas lembranças impiedosas e um cômputo de dores acumuladas nos últimos anos. Ela estaria pronta pra recomeçar sua vida junto a suas origens a quilômetros de distância.

Eu era a única razão para ela continuar se agarrando ao passado e permanecendo ali.

Observo seu rosto se decepcionar com algo. Madre tomou um gole do chá com uma calma exagerada. Os olhos dela me fitaram com certa pena.

– Eu prometi que não te deixaria sozinha. Não agora.

Abaixei a cabeça. Era vergonha. Vergonha por ser uma mulher de quase trinta anos e estar numa fase em que eu precisava muito da presença de algumas pessoas. E de pessoas que precisavam se libertar de lembranças e traumas, mas em nome de um sentimento nobre, resolveram permanecer. Pensar no quanto eu estava sendo egoísta me tirou a coragem de olhar em seus olhos. Eu queria manter alguém infeliz por perto, apenas para ter a satisfação de não me sentir completamente só.

– Eu... realmente peço desculpas. Eu queria ter a decência de olhar pra você dizer, vá, vá embora. Eu vou ficar bem. Mas eu não posso mentir.

DIANTE DOS SEUS OLHOSOnde histórias criam vida. Descubra agora