Capitulo 4- Lembranças

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        Num reflexo fraternal levantei-me e corri para a porta de madeira no canto do quarto: trancada. Enquanto batia na porta com todas as minas forças, na espera de que alguém possa me dar alguma explicação, senti uma dor tremenda na perna e soltando um gemido caí no chão, também de  madeira, me entregando a dor por momentos... Que diabos?! Chão de madeira?

       Esquecendo do meu principal propósito, olhei com atenção à minha volta. Parecia estar num quarto infantil, mas com alguns remédios no criado mudo ao lado da cama, algumas pelúcias espalhadas e as paredes rosa-bebê ilustradas com pequenos animais pintados à mão me davam uma tremenda sensação de déjà-vu.

         Uma luz forte atingiu meus olhos e involuntariamente cerrei-os, também levando a mão até o rosto.  Olhando por onde a claridade invadia o quarto, notei uma janela, meu primeiro impulso foi levantar e salta-la, maquinando um plano para fugir. Plano que deu-se pela observação de que quem me trouxe aqui, não queria ver-me livre, leve e solta perambulando por aí, caso contrário deixaria a porta destrancada, mas logo lembrei-me da dor e fui impedida de concretizar-lo pela perna dolente.      

        Um espasmo repleto de dor aguda percorreu minha perna, direcionando meu olhar. Notei que a gaze que a enfaixava estava manchada com sangue, ao ve-lo me desesperei. Nunca me senti bem diante desse líquido vermelho, Medicina? Jamais. Mas resolvi olhar por baixo do tecido e mirei um caminho de pontos sobre um profundo corte, algo que me deu um certo alívio: alguém estava cuidando de mim.

         Contente e ao mesmo tempo confusa, resolvi arrastar-me até a janela, creio que pela força do hábito: quando precisava clarear os pensamentos, acalmar-me, amadurecer uma ideia ou até por lazer, me direcionava à janela. Algo em ver as árvores balançado com sopro do vento, as nuvens dançando no céu ou em sentir o calor do sol sobre o rosto, me acalmava. Uma vez, passei o dia inteiro observando um pássaro construir um ninho, segurava os galhos pesados em suas pequenas patinhas, encaixando-os como um esplêndido arquiteto e lutando bravamente contra o vento, que ao soprar destruía grande parte da sua humilde casinha, mas ele, persistente, parecia saber que o esforço valeria a pena.

          A vista daquela janela, em particular, provocou-me sensações sortidas: ao mesmo tempo que me trazia a calmaria usual, conduzia-me lembranças perdidas do meu subconsciente, algo que me despertava angústia. Constituída por um grande jardim, com muitas árvores que pareciam ser frutíferas, uma grama tão verde quanto um periquito, uma caixa de areia e um balanço.

O balanço de dois assentos que pendia de um ao outro, no ritmo do vento, emitindo um barulho de ferro enferrujado, parecia fazer parte de algumas lembranças antigas, com a minha mãe.

         Não eram lembranças nítidas, mas recordo do frio na barriga, da adrenalina e do arrepio viciante que sentia quando mamãe me empurrava no velho balanço vermelho, lembro-me de gritar "Mais alto! Mais alto, mamãe!", e nos momentos em que estava no alto, olhava para baixo e via como éramos pequenas. Não era algo absurdamente alto, mas mesmo assim me dava uma pequena percepção da imensidão do mundo. Dessa forma nasceu meu sonho mais considerável: conhecer o mundo.

         Queria conhecer cada cultura, cada comida típica, cada idioma. Queria sentir-me maior, mas não maior que os outros, maior que eu mesma.  

          Distraindo-me do meu devaneio percebi que as sensações de déjà-vu tinham uma origem, eu realmente já estive nessa casa, mas, por que não me lembrava de tudo? Para começar, por que estava ali agora? Eu morri?

Por que não recordo em nenhum momento a companhia de papai nesse lugar? Atordoada, olhei ao redor e concedi minha atenção à uma pequena, porém comprida mesa rosa, encostada na parede do quarto.

         Sobre a estante haviam várias fotos emolduradas, por um momento achei que estava delirando, até me belisquei, que idiota. Mas era real! Eu estava em todos os retratos, sem brincadeira! Em todos! Minha face gordinha infantil estava impressa em cenas que nem me lembrava: suja de sorvete ao lado de uma menina nas mesmas condições, brincando num parquinho e chorando em uma banheira, todos esses clichês para foto de um bebê, nesse momento me perguntei-me com ironia o que ocorrera com minhas dobrinhas, sendo que atualmente sou bem magra, revirei os olhos lembrando desse aspecto desagradável em mim mesma.

         Mas a maior foto, e que por acaso estava no meio de todas elas, era uma foto com minha mãe. Antes que possa me perguntar o porquê de estarem ali, uma lágrima escorreu-me e pingou sobre o retrato, falei em voz alta:

        – Mamãe, por que me deixastes?

        – Nunca foi minha intenção que se sentisse abandonada. Sabia que seu pai cuidaria bem de você.

        Abri a mão e  deixei o retrato cair sem consciência, um arrepio subiu pela minha espinha, mas não virei-me. Seria possível?

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