Ah, ela... quando vejo ela passar, me sinto como se tivesse trancado meus sentidos em algum lugar florido, em paz. Eu podia sentir o meu amor por ela correndo sob minha pele. Era tão real, tão forte e espesso que eu poderia tocá-lo com as mãos. O amor por ela. Mas no meu sentimento mais lindo pulsava uma dor. Ela não me olhava nos olhos, não me dirigia a palavra se estivéssemos em público. Mas, ainda assim, eu acreditava nela. Ela dizia me amar, quando éramos apenas eu e ela, na campina, debaixo na grama alta, atrás da cerejeira. Seus toques eram quase nada em mim. Eu precisava de algo mais intenso para sentí-la. Eu queria estar nela, estar dentro dela, queria poder abraçá-la dessa forma, pois, externamente ela me parecia incompleta, parecia me escapar algo de precioso. Por isso, arriscava um beijo ou outro, mas ela dizia que eu a machucava, que meu beijo era carnívoro demais... . Eu só queria estar dentro dela.
Eu sabia que ela não me amava, porém, forçava-ma a acreditar em todas as vezes em que me dizia isso. Mas eu sabia que não, pois, se amasse, eu não a sentiria incompleta num abraço, meu amor não sentiria dor ao ouví-la dizer as palavras.
Eu sabia, mas não queria as provas. E então, a vida resolvera mostrar-se terrívelmente cruel a mim, como eu sempre soubera ser, e a mentira provou não saber ir além com suas pernas curtas. Eu vi. Eu a vi beijar, como nunca me beijara, outro cara. Era um beijo pervertido, afobado. Eu a via alisá-lo o corpo inteiro. Ele fazia o mesmo, com nítida intimidade que ia além da habilidade. Ele já explorara por aquela terra. Eu os via, até que a raiva me oferecera uma nova visão: "Você sempre soube, Oto, sempre soube..., mas você não vai deixá-la ser tocada por outro, vai? Ela diz que o ama. Mas você sabe. Não só a você, mas ela ama. Sua, ela deve ser sua... . Minha ELA É MINHA!".
Eu iria até lá, lincharia-o e fugiria com ela. Mas antes que eu e minha insanidade chegassem até lá, ela se despediu e partiu para uma nova esquina. Então, eu fui atrás.
O que ela faria ali? Ela entrara na casa de madame Neya, uma das costureiras mais respeitadas do nosso bairro. Mesmo que se tratasse de negócios, eu não a perderia de vista. Mas, ao entrar, vi que ela subia a escadaria que levava até a casa de madame, que a essa hora, deveria fazer atendimentos na loja. A porta da frente se fechara. A janela estava aberta. Ótimo.
Quando entrei, ouvi risadas. Ela estava rindo. Reconheci também a voz de 40 da madame rindo maliciosamente. Com a desconfiança arrepiando-me o fios de cabelo e o medo socando-me os ossos do peito, me direcionei com cautela até o som, que me apontara como destino o quarto principal. Ela estava nua. Madame estava nua e brincava com os seios jovens da garota que dizia me amar. Ao mesmo tempo, ela saboreava com curtos e famintos beijos o pescoço da madame. Eu não conseguia me controlar. O que estava acontecendo ali?... eu não sabia o que estava sentindo, eu só queria chorar como uma criança até que morresse engasgado com o próprio choro. Sem que eu percebesse, havia feito ruídos demais. Ela me vira. Pensei então que ela viria, correria até mim e pediria-me perdão, que choraria de joelho aos meus pés, que afirmaria amar-me e que daria uma explicação para tudo aquilo. Mas não. Ela me vira e tudo o que fizera fora olhar-me nos olhos, pela primeira vez, rir e beijar mais uma vez o pescoço da madame. Ela me vira perder as forças e cair no chão. Ela não tivera nem mesmo pena. A cada soluço que me ebulia, ela gemia alto e ria.Eu não sabia exatamente o que sentia, mas doía muito. Tamanha a dor era essa, que do peito se espalhara por todo o corpo, por não caber somente ali. Eu sentira raiva, muita, muita raiva, um ódio que me fizera querer assasiná-la. Mas eu ainda a amava. Como ferí-la? Eu queria ferí-la, mas meu eterno amor não me permitira. Meus pensamentos diabólicos me diziam, aleatóriamente, e em cada imagem em que a atirava ao fogo, que meu peito iria arder; como agora, por toda a minha vida. Mas seria pior, ao dobro, pois eu teria de odiá-la. Pois eu teria de vê-la todos os dias. Pois eu a veria beijar outro homem. Pois ela riria na minha cara, e ainda assim eu seria capaz de amá-la. De amá-la, sim, de lidar com a dor, nunca.
Há a existência de um antídoto. Eu precisava fazer aquilo. Eu morreria por ela. Eu morreria para não vê-la longe de mim. Eu morreria agora para não ter que morrer aos poucos a cada dia. Eu morreia naquele instante por vergonha. Eu morreria.
Então eu quis que fosse perfeito. Seria na nossa campina, no nosso lugar. Onde declarara me amar em nome da mentira e da diversão, onde eu a beijara e a desejara. E, então, ela entenderia o recado.
A echarpe que me dera como uma lembrança permanente, para que me fizesse sonhar com ela todas as noites, era tudo o que eu precisava. Ela entenderia o recado. Dei-lhe um último beijo sagrento ao cortar-lhe os labios. Ela entenderia o recado, sim, entenderia. Era adeus o que diria, mas ela saberia que era um até logo. Ela entenderia o recado.
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Errar é Pecado
Mystery / ThrillerNão saber a que horas seus pecados irão se voltar contra você é um sentimento incrivelmente atormentador. O sentimento de querer fugir, de se esconder é ainda pior pois, a impossibilidade de fazê-lo é como se, num subito e ágil movimento, o chão sob...