Sentar-me na mureta da varanda com um enrolado caseiro entre os lábios, soprando argolas de fumaça para que dançassem ao ritmo do grave do country e do arritmíco sonorear das gostas de chuva colidindo-se por todas as partes, em todas as coisas, era uma terapia da qual eu podia raramente desfrutar. Em Marcapé não se tem com fartura previsões de chuva e, esse ritual sem ela, nunca seria prazeroso.
A chuva veio apressada, como se ainda tivesse metade do mundo para se encharcar, arrastando consigo meia dúzia de crianças do bairro para divertirem-se nas águas dos buracos da rua. Elas traçavam guerras de lama e riam calorosamente, provando veementemente da mais pura alegria, podia-se notar com nítida clareza a felicidade cintilar nos olhos coloridos delas, nos dentes expostos e nas acrobacias que elas executavam para descarregar toda aquela alegria em forma de energia áurea e muscular.
Não conseguia parar de observá-las, a cena era absurdamente encantadora e, sim, eu estava gostando. Senti várias vezes um impulso cutucar-me o peito, dando-me leves puxões para levantar-me, ir-me em direção a elas, afogar meu pés na água do buraco na rua, de pintar-me o rosto com lama e entrar para aquela brincadeira tola.Por um segundo, senti uma cutucada diferente no peito. Essa era a do desejo. Qualquer uma daquelas crianças lá fora poderiam ser minhas. E seria bom. Eu gostaria de ter aquela, a menor de todas, a negra com flor que, na verdade, é uma planta de canteiro, no cabelo. Tão delicada. Ela parecia estar em um mundo próprio, feliz.
E aquele, dando pulinhos dentro de um buraco, mascando um capim. Esse é baderneiro e não deve calar-se um minuto a voz. Por esse eu teria uma grande aversão, ele é exatamente tudo de que não preciso mas, naquele fim de tarde, eu o desejei. Queria que pertencesse-me, que fosse meu filho. Queria ser sua mãe.
Quando a Lua apagou a luz do céu, as mães das crianças puseram-se a rua para catar seus filhos. Uma corria com a mão direita no quadril e a outra suspensa no ar, diagonalmente espalda, ameaçando o garoto que mastigava capim. Outra caminhava com calma, mas com uma carranca no rosto ao ver o estado de imundice que estavam as roupas, o corpo e cabelo da filha. Uma veio com tanta pressa que chegou a escorregar e, graças a sua menina, não se espatifara na lama. Ela pegou na mão da menina e saiu gritando "Vamos logo, que o feijão está no fogo!". As demais mães sairam todas no mesmo ato: umas corriam, outras andavam com carrancas no rosto. Mas todas reclamavam dos pés imundos dos filhos e ameaçavam-nos um tapa na bunda se sujassem o chão que elas haviam limpado.
Assim que a última mãe e sua criança foram para sua casa, eu adentrei a minha. Já estava com fome, e aquele cheiro de comida caseira que vinha da casa visinha não deixava-me driblá-la. Abri a geladeira e encontrei 4 ovos, algumas fatias de mortadela e, em uma sacola, dois tomates, um pepino e 4 batatas. Ótimo, vegetais, ovos e carne de quinta.
Abri o baú aos pés da cama e revistei tudo o que havia ali. Achei a bolsinha de linho bege. Retirei dela 45 reais mais algumas moedas e pus no bolso, apanhei o casaco do gancho e fui para a rua.
O bar em que pretendia ir estava fechado, e na porta o recado dizia " Canos de água da cozinha inativos por risco de vazamento interno. Fecharemos por tempo indeterminado." Ótimo, o próximo bar fica a três quarteirões de onde estou, e não estou com saco para cruzar o bairro e nem arriscar a ouvir mais um "Meus sentimentos. Teu pai era um bom homem." E algumas histórias de como ele ajudou o bairro, uma vez, a livrarem-se da praga de abelhas que instalara-se, aparentemente, por todo o bairro, em todas as árvores e em algumas casa.
Tirei os 45 reais e 60 centavos do bolso e fitei-os em minha mão. Levantei o olhar para o restaurante a minha frente e fiz uma rápida seleção de o que eu poderia comer e pagar, de forma que sobrasse troco, um bom troco. O restaurante ficava a duas casas de distância do bar e, apesar de ser modesto e de preços acessíveis, eu ainda preferia fazer minha refeição de batatas, azeitonas, farinha e toucinho no bar. Eu comia bem e tomava uma cerveja por vinte e cinco reais. O restaurante não é caro mas, com certeza, com vinte e cinco reais eu conseguiria comprar apenas um prato de fritas. Além de que lá dentro há tudo o que procuro evitar: Gente, luz, conversas alheias e música animada.
Ao empurrar a porta o sininho que havia a cima dela tilintou, anunciando minha chegada. Para a minha sorte, apenas as pessoas sentadas nas mesas próximas a porta voltaram seus olhares para mim, o que, numa contagem rápida em uma olhada rápida para os dois lados, se somavam 8 cabeças. O restaurante não transbordava pessoas, mas também não se tinha carência delas. Por isso, apertei o passo e concentrei os olhos no chão de madeira seca e descascada e nos passos que eu dava. Arrisquei levantar o olhar para revistar rapidamente todo o espaço, enquanto tentava passar entre duas cadeiras ocupadas que impressavam o caminho até o balcão. Em um canto, á duas mesas de distância da parede branca, avistei uma mesa desocupada. Apressei-me até ela e sentei-me, aliviada. Apanhei o menu e avalie os preços cuidadosamente. Eu só tinha quarenta e cinco reais e sessenta centavos, não podia me permitir a gastar sem somar.
O prato mais barato que eles preparavam era massa grossa, almôndegas ao molho e uma salada de espinafre com cebola, e isso me custaria trinta e seis reais do que eu possuía. Tudo bem, iria comer melhor do que vinha comendo há dois meses inteiros. Isso quando havia alimento. E, ainda assim, me restaria um trocado. Estendi o braço para o alto e sinalizei para um garçom que voltava da multidão para o balcão. Ele esticou o pescoço paraver-me por cima da figura de um homenzarrão, arqueou as sobrancelhas e abriu um sorriso cheio de dentes e veio de ombros arriados de cansaço, realizando curvas apertadas e perigosas por entre pessoas, cadeiras e mesas, e entre outros garçons. Assim que chegou a mesa, notei que ele parecia ter acabo de sair do banho sem ter se enxugado. Seus rosto cintilava exibindo gotículas de suor por toda a parte e, quando uma nova brotava, duas cediam o lugar, escorregando pela superfície morena até o queixo e empapando sua gravata. Nem a bandeja em suas mãos não se livrara da chuva.
Automaticamente, arrastei-me com a cadeira para trás e senti que meu rosto se contorcia em uma discreta careta de nojo, mas não tão discreta assim, porque ele percebeu minha reação e, já sabendo o motivo, pôs a desculpar-se com um sorriso torto de vergonha no rosto. "Perdoe-me, senhorita. O restaurante hoje está muito movimentado, e as pessoas exigem agilidade. Somos pouquíssimos garçons esta noite para muito trabalho. Estou desprevenido de lenços e toalhas, porém, garanto-lhe que isto não será um problema."
Eu aceitei as desculpas com um aceno de cabeça e logo informei-lhe meu pedido. Olhar para aquelas gotículas brigando por espaço estava deixando-me incomodada. "Meu pedido é o de número 13. A massa com molho e espinafre." Disse-lhe. "Ah, sim. Desejas algo para beber? Temos da água ao vinho." Ele disse "Temos da água ao vinho" teatralmente, como se passasse o dia inteiro treinando a melhor forma de dizer a frase com cordialidade. Admito, funcionou. "Não, obrigada. Nada de bebidas por hoje. E não precisa preocupar-se com as horas, podes demorar, tenho tempo." Achava que não, mas ele entendeu a deixa para ir ao banheiro lavar-se. Ele sorriu torto mais uma vez, acenou um "sim, senhorita" com a cabeça e deu-me as costas.Apesar de tê-lo dito que não precisava se apressar, alguns minutos depois ele já estava de volta. Avistei-o fazer a curva de saída da cozinha com a bandeja prateada na mão direita e a esquerda pousada por trás da cintura, realizando manobras de drible pelo caminho. Acompanhei-o com os olhos vir até mim, com a testa cintilante mas dessa vez sem suor, quando ele fez uma volta á frente de uma mesa de toalha azul claro onde sentavam-se um casal, e serviu-lhes de um suco amarelo. O homem estava de mãos dadas com a mulher e, para receber o líquido, desgrudou os olhos do menu e sorriu para o garçom.
Filho da mãe. Cem sorriu para o garçom, seu rosto na minha mira, mas parece que só eu o vi. Droga, parece que havia esquecido-me como me mexer.
Acordei do transe quando o garçom postou-se a minha frente, trazendo de volta o foco dos meus olhos. Percebi seus olhos nervosos, acho que ele procurava por uma aprovação minha quanto ao seu semblante enxuto. Sorri sem dentes e acenei afirmativamente com a cabeça, aprovando-o. Ele estendeu o braço, em sua mão erguida estava o prato branco de porcelana, e postou-o á minha frente. De imediato, todos aqueles cheiros deveras delíciosos do recinto, sumiram do ar ao mesmo instante em que o bafo quente do espaguete encontrava o caminho até as minhas narinas. Estava tonta de alegria e quase caí sobre o prato quando enrolei a massa no garfo e levei-a a boca. Saboreando bem, percebi que o que eu vinha comendo, perto dessa culinária, tivera gosto de terra, sem exceção, mas a fome fazia-os um banquete real.
Assim que me dei por satisfeita, cruzei os braços ao colo e estiquei as pernas, a observar o casalzinho que durante áquela deliciosa refeição havia esquecido.
Lenci ria tanto que seu rosto do branco passou para o vermelho. Seu cabelo estava solto, ondulado, o que a deixava com o rosto mais ousado, já que com aquele coque esticado ela mais se parecia com uma merendeira. Ela abraçava o estômago, provavelmente com dor, farta de rir de qualquer merda que Cem havia lhe dito ao pé do ouvido. Droga. Se eu fosse burra já estaria arremessando a mesa deles para longe e enchendo a cara dos dois de tapas. Aquela felicidade estava me incomodando mais do que se houvesse um formigueiro em meus jeans, mas ao mesmo tempo, recusava-me a levantar-me, a mover-me um centímetro do meu lugar. Mas quando ele se aproximou dela e, com o dorso da mão do braço escorado á mesa, ele acariciou a bochecha dela e com os dedos buscava uma mexa do seu cabelo para escondê-lo atrás da orelha. Ele se aprumou para frente, envolveu-lhe o pescoço e puxou-a lentamente para um beijo. Não, não. Meus pés socaram o chão, minha cadeira voou atrás de mim e quando me dei conta, eu já estava lá, com as unhas cravadas nas costas da cadeira dela.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Errar é Pecado
Mystery / ThrillerNão saber a que horas seus pecados irão se voltar contra você é um sentimento incrivelmente atormentador. O sentimento de querer fugir, de se esconder é ainda pior pois, a impossibilidade de fazê-lo é como se, num subito e ágil movimento, o chão sob...