O Caso de Charles Dexter Ward

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Capítulo Cinco
PESADELO E CATACLISMO

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Logo em seguida deu-se a horrenda experiência que deixou uma marca indelével de terror na alma de Marinus Bicknell Willett e envelheceu de uma década a aparência de um homem cuja juventude já então andava muito distante. O doutor Willett conferenciou longamente com o senhor Ward e chegou a um consenso com ele em vários pontos que, na opinião de ambos, os psiquiatras achariam ridículos. Eles se davam conta de que existia no mundo um terrível movimento cuja ligação direta com uma necromancia mais antiga ainda do que as bruxarias de Salem era algo acima de qualquer dúvida. 

Que pelo menos dois homens vivos — e outro no qual não ousavam pensar — detinham o domínio absoluto de mentes ou personalidades que haviam existido já em 1690 ou mesmo antes, como estava quase inquestionavelmente comprovado, mesmo contra todas as leis naturais conhecidas. O que estas terríveis criaturas — bem como Charles Ward — estavam fazendo ou tentando fazer parecia bastante claro pelas suas cartas e por todo vislumbre de luz antigo e novo que filtrara sobre o caso. Eles estavam saqueando túmulos de todos os tempos, inclusive os dos maiores e mais sábios homens do mundo, na esperança de recuperar das vetustas cinzas algum vestígio da ciência e do saber que outrora os animara e informara. 

Um tráfico hediondo desenrolava-se entre estes vampiros de pesadelo, e ossos ilustres eram barganhados com a atitude calculista e calma de meninos de escola trocando livros entre si; por aquilo que era possível arrancar dessa poeira secular anteviam-se um poder e uma sabedoria superiores a tudo o que o cosmos jamais vira concentrado num só homem ou grupo. Eles haviam encontrado meios blasfemos de manter vivos seus cérebros, no mesmo corpo ou em corpos diferentes, e, evidentemente, haviam descoberto uma maneira de extrair a consciência dos mortos que eles conseguiam obter. 

Aparentemente, existia um fundo de verdade no velho e quimérico Borellus, quando escreveu a respeito do modo de preparar, mesmo para os restos mais antigos, certos "sais essenciais" dos quais era possível evocar a sombra de um ser há muito falecido. Havia uma fórmula para evocar essa sombra e outra para fazê-la voltar, e agora havia sido tão aperfeiçoada que podia ser ensinada com sucesso. Era preciso ter muito cuidado com essas evocações, pois as lápides das tumbas antigas nem sempre são precisas. 

Willett e o senhor Ward estremeciam ao passar de conclusão em conclusão. As coisas — presenças ou vozes — podiam ser evocadas de lugares desconhecidos bem como do túmulo e nesse processo também era preciso ter muito cuidado. Joseph Curwen indubitavelmente evocara muitas coisas proibidas, e quanto a Charles — o que se podia pensar dele? Que forças "fora das esferas" haviam chegado a ele dos tempos de Joseph Curwen fazendo sua mente voltar-se para coisas esquecidas? Ele fora levado a descobrir certas instruções e as usara. Conversara com o homem do horror em Praga e vivera muito tempo com a criatura nas montanhas da Transilvânia. Por fim, encontrara o túmulo de Joseph Curwen. 

O artigo do jornal e aquilo que sua mãe ouvira aquela noite eram demasiado importantes para serem desprezados. Então ele chamara algo e este algo viera. Aquela voz possante nas alturas, na Sexta-feira Santa, e aqueles tons diferentes no laboratório da mansarda trancada—Arqueie assemelhavam com sua profundidade e cavernosidade? Não haveria neles um horrível prenúncio do temido estrangeiro, o doutor Allen, com seu tom baixo espectral? Sim, era isso que o senhor Ward havia percebido com um vago horror em sua única conversa com o homem pelo telefone — se é que se tratava de um homem. Que consciência ou voz infernal, que mórbida sombra ou presença respondera aos secretos ritos de Charles Ward atrás daquela porta trancada? Aquelas vozes ouvidas numa discussão — "é preciso que fique vermelho três meses" — Bom Deus! Não. Aquilo acontecera pouco antes de começar a onda de vampirismo? O saque do antigo túmulo de Ezra Weeden e mais tarde os gritos em Pawtuxet — que mente planejara a vingança e redescobrira a sede das mais antigas blasfêmias, por todos evitada? E depois o bangalô e o estrangeiro barbudo, os boatos e o terror.

Contos de H.P LovecraftOnde histórias criam vida. Descubra agora