O Caso de Charles Dexter Ward

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 Marinus Bicknell Willett não esperava nem um pouco que as pessoas acreditassem mesmo em parte em seu relato, com exceção de algum amigo condescendente, portanto, não fez qualquer tentativa de narrá-lo fora do círculo dos mais íntimos. Somente alguns estranhos a este círculo o ouviram e a maioria destes ri e observa que, com certeza, o médico está ficando velho. Foi aconselhado a tirar umas férias prolongadas e a evitar casos futuros de distúrbios mentais. Mas o senhor Ward sabe que o velho médico diz uma horrível verdade. 

Acaso ele próprio não viu a pestilenta abertura no porão do bangalô? Willett não o mandara para casa vencido e doente às onze horas daquela agourenta manhã? Acaso não telefonou em vão ao médico naquela noite e novamente no dia seguinte, e não foi de carro até o bangalô ao meio-dia encontrando o amigo inconsciente, porém incólume, numa das camas do andar superior? Willett estertorava e abriu lentamente os olhos quando o senhor Ward lhe deu um conhaque que buscara no carro.

 Então teve um calafrio e gritou, "Aquela barba... aqueles olhos... Meu Deus, quem é você?" Algo muito estranho a ser dito a um cavalheiro elegante, de olhos azuis, bem escanhoado, a quem ele conhecia desde a adolescência. 

Na luminosidade do meio-dia o bangalô não havia mudado desde a manhã anterior. As roupas de Willett não estavam desalinhadas, com exceção de algumas manchas, os joelhos um pouco puídos, e um leve odor acre lembrou ao senhor Ward aquele que sentira em seu filho no dia em que este fora levado ao hospital. 

A lanterna do doutor estava faltando, mas sua valise estava lá, inteira, vazia como quando ele a trouxera. Antes de se delongar em explicações e obviamente com um grande esforço moral, Willett cambaleava completamente tonto enquanto descia até o porão onde tentou forçar a fatal plataforma diante da tina. Não cedia. Atravessou o local e foi ao lugar onde havia deixado sua sacola de ferramenta, que não usara no dia anterior, pegou um formão e começou a forçar as pranchas renitentes, uma por uma. 

Em baixo, o concreto liso ainda era visível, mas já não havia sinal de qualquer abertura ou perfuração. Nada se escancarava dessa vez, aterrorizando o pai desorientado que seguira o médico no porão; somente o concreto liso em baixo das pranchas — nenhum poço fétido, nenhum mundo de horrores subterrâneos, nenhuma biblioteca secreta, nem papéis de Curwen, nem poços dignos de pesadelos com fedores e uivos, nenhum laboratório ou prateleiras ou fórmulas gravadas nas paredes, nada... O doutor Willett ficou pálido e se agarrou ao homem mais jovem. "Ontem", perguntou em voz branda, "você o viu aqui... e sentiu o cheiro?" E quando o próprio senhor Ward, petrificado pelo horror e pelo espanto, encontrou forças para acenar afirmativamente, o médico emitiu um som quase um suspiro ou um estertor e acenou por sua vez. "Então vou lhe contar", ele disse.

 Assim, durante uma hora, no cômodo mais ensolarado que conseguiram encontrar no andar de cima, o médico sussurrou seu relato estarrecedor ao pai surpreso. Não havia nada a contar além daquela forma que aparecera quando o vapor negro-esverdeado começou a se desprender do kylix e Willett estava demasiado fatigado para perguntar a si mesmo o que em realidade acontecera. Os dois homens desnorteados ficaram abanando a cabeça, num gesto inútil, e a certa altura o senhor Ward arriscou uma sugestão num sussurro. "O senhor supõe que seria útil cavar?" O médico ficou calado, pois parecia inadequado a qualquer espírito humano responder quando poderes e esferas desconhecidas haviam invadido de modo tão extraordinário esse lado do Grande Abismo. De novo o senhor Ward perguntou: "Mas aonde foi? Ele trouxe o senhor aqui, o senhor sabe, e vedou de alguma forma o buraco". 

E Willett de novo deixou o silêncio falar em seu lugar. Mas, apesar de tudo, o assunto não estava encerrado. Pegando o lenço antes de se levantar para ir embora, os dedos do doutor Willett agarraram no bolso um pedaço de papel que não estava lá antes, junto com as velas e os fósforos que havia apanhado no subterrâneo desaparecido. Era uma folha de papel comum, arrancada obviamente da prancha barata naquele fantástico cômodo dos horrores, em algum ponto debaixo da terra, e o que estava escrito nele havia sido rabiscado com um lápis comum — sem dúvida aquele mesmo que se encontrava ao lado da prancha. 

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