Quem nunca cometeu um crime que atire a primeira pedra.
O lançador deste desafio em praça pública certamente seria alvejado por todos os lados. As pessoas auto-identificadas como cidadãos de bem jamais admitirão ter cometido um crime; é desconcertante a ideia de propensão a atos ilícitos. Também é possível que estejam sendo sinceras na sua negação, já que podem realmente não ter consciência de todos os crimes que eventualmente cometeram. Há uma diversidade enorme de delitos identificados no código penal que podem ser cometidos diariamente sem que os autores deles se apercebam. Os delitos estão separados por diversos níveis de gravidade. Todos estão sujeitos a algum tipo de punição que não implica necessariamente o encarceramento. Há punição por meio de multas, de trabalho voluntário, etc. Como é evidente, a grande maioria das pessoas não tem conhecimento amplo do código penal e normalmente ignora uma série de condutas enquadradas criminalmente. Porém, as pessoas sabem que já cometeram algum crime ao longo da vida. Podem não saber de todas as suas infrações, mas decerto conhecem algumas. E mais: cometeram-nas conscientemente, sabendo que estavam violando a lei. Por mais que atirem pedras a quem lance o desafio, no seu íntimo sabem que não são tão inocentes.
Num hipotético exercício de honestidade, de confessionalidade, essas pessoas se julgariam criminosas por terem cometido delitos? De todos os níveis de condutas ilegais, onde elas estabeleceriam o limite entre a infração desagravada e a criminalidade consequente? Considerando que entre atravessar uma avenida fora da faixa de pedestre e assassinar uma pessoa há um número gigantesco de delitos que se diferem pelo menos em gravidade e intencionalidade, a identificação desse limite não é assim tão pacífica e consensual. Num cenário de medo generalizado, violência sectária e nervos à flor da pele, como no caso do Brasil (ou de várias áreas do país, nomeadamente as urbanas), é bem possível que certos pequenos delitos – comportamentos historicamente estigmatizados, como o consumo de maconha – sejam encarados com rigor e grandes delitos sejam cometidos por quem sempre se antecipa a pedir mão pesada aos criminosos. Uma das mais decisivas características psicológicas coletivas da população brasileira é o desequilíbrio emocional na hora de debater o delicado problema da criminalidade no país. Estamos muito longe de estabelecer um ambiente concertativo propício para o desenvolvimento de uma abordagem que se quer fria, racional e necessariamente científica. O tema é tão grave que talvez seja o maior desafio que atualmente se impõe aos brasileiros. Suas implicações são tão variadas que praticamente abarcam todas as áreas de estudo das ciências sociais e econômicas e do Direito. Mas sobretudo implica a atuação de indivíduos equilibrados e capacitados de discernimento.
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Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista
Non-FictionO problema da criminalidade é um dos grandes desafios da sociedade brasileira e os tremendos fracassos sucessivos apontam para a necessidade de um novo paradigma que reoriente as políticas de segurança pública, os métodos punitivos e invariavelmente...