O crime como hipótese latente

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Após uma espécie de introdução, farei uma drástica guinada na narrativa por meio de uma confissão: eu já cometi crimes. E o digo com a serenidade de quem sabe que o leitor, seja quem for, também cometeu. E que provavelmente cometemos crimes semelhantes, enquadrados da mesma forma. Isto é uma certeza derivada da própria complexidade da nossa vida em sociedade. É impossível vivermos dentro dela sem infringir suas leis.

Mas vou mais longe: já cometi um crime passível de prisão. E quase fui preso, não fosse a providencial intromissão de algumas pessoas.

Certa feita, lá pelos já longínquos idos de 1995, quando eu tinha doze anos e residia no condomínio Parque Diamante no bairro Ponto Novo, em Aracaju, descobri uma nova forma de diversão: vitimar vidraças e portas de prédios com pedradas. Eu tinha um comparsa que também residente no condomínio. Seu nome era irrelevante, já que todos o chamavam de Animal em função do seu jeito meio retardado e espalhafatoso de ser (nas peladas da rua ele era um tão autêntico carniceiro que faria qualquer zagueiro truculento tê-lo como ídolo). Durante várias noites seguidas fomos à rua de trás (que era como chamávamos uma rua que ficava do outro lado dos prédios perfilados ao longo da via principal do condomínio, junto à qual vivíamos) para tentar descaradamente espatifar as entradas dos prédios com pedregulhos que encontrávamos pelo chão. Agíamos como se apenas brincássemos inocentemente, com total despreocupação. Era uma nova modalidade de diversão aventureira e exploratória que nos levava às traseiras do condomínio, um cenário pouco conhecido por nós, onde poderíamos sentir adrenalina longe das pessoas que nos conheciam. Tínhamos noção de que aquilo era errado, mas não da sua gravidade. Após acertar em cheio os alvos, corríamos satisfeitos, protegidos pela escuridão da noite, e regressávamos ao quartel-general. Imaginávamos que a fuga nos livrava do que poderia ser no máximo alguns sermões. Até que em uma das fugas a galope fui alcançado por um morador enquanto desdenhava do perigo reduzindo a velocidade, enquanto ria da correria tresloucada de Animal, que contornava a esquina desaparecendo das vistas. Fui erguido pelos cabelos pelo indivíduo que, por azar, era policial militar. Logo uma pequena multidão se acumulou e a decisão de todos era chamar a Febem. Só o nome da instituição era aterrorizante. Naquele momento, tudo o que eu ouvira falar dela ao longo dos anos, entre fatos e mitos, começou a latejar no meu cérebro, que por sua vez ativou as torneiras e cascatas escorreram pelo meu rosto. Chorei copiosamente, esperneando, fazendo o maior papelão de que me lembro, enquanto todos à minha volta me lançavam palavras impiedosas. Até que reconheci entre aquelas pessoas o irmão de um amigo e o implorei para que fosse chamar a minha mãe ou a minha tia. Essa história ficaria marcada no condomínio e tive de aceitar todas as chacotas posteriores. Durante praticamente toda a infância tive de aturar piadinhas e comentários sobre os atributos físicos das duas e após o ocorrido passou-se a falar na vizinhança que a beleza delas – que foram juntas me resgatar – foi o que fez com que o policial e as demais pessoas tivessem desistido de me enviar à Febem.

Perguntado sobre motivações, não consegui encontrar uma resposta. Eu realmente não sabia o que me havia metido naquela brincadeira. Todos concluíram, portanto, que fora uma derrota do meu time, o São Paulo, na semana anterior. Estavam equivocados, mas como aquela conclusão parecia fazer todos mais compreensíveis no trato reservado a mim, deixei que acreditassem naquilo. Até tentei fazer-me também acreditar na explicação improvisada. Parecia uma saída por cima, admirável, como se a revolta só demonstrasse o grande amor pelo tricolor paulista. Poucos meses depois eu já havia virado casaca, tonando-me gremista.

Consequências? Nenhuma. Minha família não me impôs nenhum castigo. No dia seguinte eu já estava de volta à rua para brincar normalmente. Já Animal, que conseguira fugir no momento do crime, foi impedido de sair de casa durante vários dias. A verdade é que o policial o havia visto antes que ele contornasse a esquina e eu, sob tenebrosas ameaças que repetiam o nome daquela instituição de menores, revelei sua identidade. Depois alguém tratou de avisar a sua mãe.

Criminalidade no Brasil: Um Desafio HumanistaOnde histórias criam vida. Descubra agora