Afinal, o que são os Direitos Humanos?

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Ao contrário do discurso rasteiro de quem não estuda a questão, os direitos humanos funcionam todos os dias para qualquer cidadão. Todos somos protegidos socialmente pela noção desses direitos e juridicamente pela aplicação legal da sua assimilação. Todas as garantias legais de que dispomos na vida em sociedade são amostras deles. Todo o Estado de Direito é baseado nisso. Elimine os direitos humanos e teremos a barbárie. A noção de que a relação de punição à criminalidade deve estar fundamentada num pressuposto legal que contemple os direitos fundamentais é uma preciosidade que demorou séculos para ser construída e não pode ser descartada por arroubos de ódio acumulado. Quando abordamos o tema da criminalidade, devemos compreender que os direitos humanos não são uma brecha através da qual bandidos são ilibados e desfrutam de impunidade. Aliás, os direitos humanos são responsáveis até pelo reforço do entendimento de certos atos como sendo criminosos. Ou seja, ele é fundamental ao cidadão que necessita de segurança para viver com dignidade. Como os direitos humanos são um conjunto de garantias à condição humana, ele contempla todas as pessoas e é um mecanismo de mediação das complexas interações das sociedades. Como tal, incluem também as relações jurídicas e é aqui que há toda a confusão que faz com que muitos aceitem discursos vazios e demagogos que acusam os direitos humanos de proteger bandidos.

Se há algo que os direitos humanos protegem, é a civilidade. Também o bom senso, a racionalidade, a razoabilidade. Mas sobretudo ele existe para proteger a vida. O discurso obscurantista que ganha terreno num Brasil atordoado pelos próprios nervos diria que um estuprador é favorecido pelos direitos humanos que lhe garantem a vida e um julgamento adequado. Para quem engole esse discurso, o estuprador deveria ser prontamente morto, se possível com linchamento popular. O que essas pessoas não percebem é que as vítimas – ou potenciais vítimas – de estupro têm a garantia de que estupro é crime exatamente em função da interpretação legal da noção de direito à integridade física. Ou seja, entendemos o estupro como crime porque os direitos humanos, em última análise, assim o estabeleceram. Vale lembrar que infelizmente há muitos lugares no mundo onde os direitos humanos ainda não tiveram aplicabilidade e a violação sexual é uma prática socialmente aceite. Refiro-me ao estupro por ser um crime hediondo, mas podemos pensar em outros. O importante é que as pessoas tenham a noção do valor dos direitos humanos antes de saírem repetindo discursos irresponsáveis potencialmente favorecedores do aumento da violência.

Os direitos humanos são aplicados aos bandidos simplesmente por eles serem humanos. Por mais que o discurso que os transforma em monstros abomináveis seja atraente do ponto de vista da integridade do orgulho da espécie humana, os criminosos, mesmo os mais cruéis e sanguinários, continuam pertencendo à nossa espécie e é até perigoso considerá-los criaturas não humanas, porque assim criamos uma distinção entre nós e eles, quando ela não existe: ser humano é uma condição invariável, ninguém simplesmente está humano como se pudesse deixar de estar consoante seus comportamentos. Hitler era um ser humano e não uma criatura de uma qualquer espécie assassina. Stalin também era humano. Temos de reconhecer que somos todos passíveis de comportamentos criminosos mediante certas condições sociais e psicológicas. E também mediante vícios de poder – e não apenas poder político. O assassino estuprador de hoje já pode ter sido uma criança feliz e pacífica no passado. Saber identificar o que aconteceu no percurso para que ele tenha sido tão drasticamente desviado do que entendemos por uma convivência saudável e inclusiva é uma das questões fundamentais para compreender esse tema delicado da criminalidade. Aliás, é a única maneira de tentarmos resolvê-lo. Toda a brutalidade da leitura moderna do Código de Hamurabi só garantirá mais violência sectária. O Brasil tem o quarto maior contingente carcerário do mundo. A esperança média de vida dos criminosos é baixíssima. Eles não duram muito. São mortos ou pela polícia ou por outros criminosos (o que mostra que os direitos humanos não os protegem assim tanto). As prisões têm um obsoleto modelo de punição negativa que não passa da pura vingança e não tenta estabelecer programas efetivos de reabilitação. Resumindo: não existe esse cenário de impunidade generalizada no país. Os bandidos normalmente pagam com a vida a sua atuação criminosa e isso não tem garantido de forma alguma uma melhoria nas condições gerais de segurança. É por isso que os programas sociais (o Welfare State, o Estado Social) são importantes: eles são o primeiro passo para romper com o círculo vicioso da pobreza que gera criminalidade. O Brasil possui tantos criminosos não porque a sua população tem altos níveis de psicopatia inata, mas simplesmente porque os ambientes de exclusão social são por excelência determinantes para o aflorar desse transtorno. Qualquer um de nós poderia ter um desvio desses se fôssemos submetidos a certas condições comprovadamente propícias. Por outro lado, os países escandinavos não são pacíficos apenas porque a sua população tem uma perfeição psicológica invariável. A diferença é que nesses países os direitos humanos avançaram de tal forma que garantem amplamente a dignidade dos cidadãos através de condições de vida que não desviem ninguém para o crime. A criminalidade é muito menos um caso de polícia e muito mais um caso sociológico e psicológico. Ou seja, as condições favoráveis à geração de comportamentos criminosos são casos sociológicos e psicológicos. A consequência desses comportamentos, nomeadamente o crime, é que é caso de segurança. São dois níveis de abordagem. Ainda há um terceiro nível, o punitivo, que é caso de justiça. Todos esses níveis da problemática devem estar igualmente sujeitos aos direitos humanos para que o tratamento seja feito sem ferir o Estado de Direito fundamental à organização social. Aplaudir chacinas em prisões é ser conivente com a violência. Uma sociedade que não reconhece o mal poderá também facilmente não reconhecer a distinção entre culpa e inocência, podendo disseminá-lo como prática de justiça subjetiva de indivíduos incapazes de discernir sobre seus próprios comportamentos. Quando alguém me diz que eu não teria esse discurso caso alguém da minha família fosse vítima de um assassino, dou-lhe razão. É verdade! Se alguém assassinasse uma pessoa da minha família, eu certamente iria querer vê-lo morto. Possivelmente iria querer tratar pessoalmente de tirar-lhe a vida, para me vingar na mesma moeda. E é exatamente por isso que numa situação dessas eu nunca poderia ser juiz. E também não teria condições de abordar o problema da criminalidade até que regressasse ao meu equilíbrio mental. O que quero dizer e que me parece evidente é que a justiça não pode ser tratada com emoção. Os instrumentos legais devem ser geridos pela razão. Decerto podemos discorrer sobre todas as falhas do sistema judiciário (afinal ele está sujeito a muitos jogos de interesses), mas ainda assim ele é a melhor forma de lidarmos com a criminalidade sem perdermos a decência e a humanidade e sem corrermos o risco de viver sob a lei da selva e de perder as noções de certo e errado. Não existe violência boa nem violência justa. Quem a utiliza contra um criminoso está se colocando ao nível dele. Os direitos humanos existem para que sejamos humanos no entendimento mais sublime que a designação da nossa espécie possa ter.

Criminalidade no Brasil: Um Desafio HumanistaOnde histórias criam vida. Descubra agora