Um desfecho inconclusivo: pontos de partida e constatações

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O problema da criminalidade requer uma ação urgente dos agentes sociais e políticos envolvidos com competências das diversas áreas que dialogam com ele. As suas consequências são alarmantes e afetam diariamente um país que se acostumou a conviver com a violência. Essa afetação vai além das vítimas diretas e estabelece um estado psicológico alterado em quem tem de lidar com a insegurança. É um assunto deveras sério para ser contaminado por quem não tem uma real intenção de combater a raiz do problema. O debate precisa ser desenvolvido em níveis construtivos e eficientes de discussão para ultrapassar de uma vez por todas o rasteirismo e não se moldar em demagogias. É preciso que as pessoas percebam que aquelas velhas frases de efeito batidas, que não passam de apelos emocionais, como "e se a vítima fosse alguém da sua família?" ou "quem tem pena de bandido que o leve para casa", além do clássico "bandido bom é bandido morto", não são sacadas argumentativas. São exatamente o contrário: configuram a negação da argumentação estruturada em um adequado exercício racional.

É urgente que as pessoas tenham capacidade de debater a questão para que possam participar do esforço em encontrar soluções. Se os cidadãos não são capazes de tratar o tema, ele estará a cargo de elites tecnocratas e qualquer projeto de sociedade minimamente democrático deve invariavelmente envolver os cidadãos na resolução dos seus problemas. A presença de especialistas é fundamental, mas eles não podem estar alienados do povo. Isso só agravaria o cenário a partir da desconfiança. Portanto, a situação atual é dramática quando constatamos que o apelo popular tem assimilado o discurso que apregoa métodos antidemocráticos que ferem o Estado de Direito. A existência de representantes políticos que negam a própria política e a própria concertação em nome de pseudo-soluções rápidas, simples e populistas é um entrave ao debate construtivo, mas não pode ser simplesmente ignorada. É preciso que se faça frente a esses elementos oportunistas que retiram dividendos políticos das emoções alheias. Quanto mais acesso a população tiver à informação de qualidade, aos estudos científicos, menos amplificada será a voz desses elementos, porque ela se ecoa exatamente na ignorância, nas lacunas de conhecimento. O povo deve participar ativamente do debate, mas para isso deverá estar preparado para ter uma atuação equilibrada. A vulnerabilidade intelectual é o que os torna instrumentos de manobra de quem pretende promover a barbárie apelando à vontade popular. Esse cenário de participação popular equilibrada parece utópico: recentemente uma chacina numa prisão em Manaus motivou comemorações efusivas que se apoiaram na grotesca ideia de violência de bem para varrer o problema para baixo do tapete e reacendeu um debate que de fato nunca esteve adormecido. O debate acirrado existe porque há gente que compreende a necessidade de garantir os direitos humanos e o Estado de Direito, mas a balança tem pendido para o lado da barbárie e urge reverter essa situação não com confrontação raivosa, mas com uma postura pedagógica e informativa, apelando ao bom senso, mas também apresentando efetivas políticas de melhorias na qualidade de vida. É preciso que os estudos sérios sobre a criminalidade sejam difundidos e passem a ocupar o espaço do achismo e do revanchismo. A tarefa é de todos: do poder público local e federal, dos acadêmicos e dos jornalistas, embora seja difícil esperar algo positivo de agências que utilizam a espetacularização da criminalidade como estratégia de audiência – quanto mais for difundida a ideia de que a realidade é um filme de ação, mais os cidadãos reivindicarão medidas espetaculares imediatas, criando personagens do bem e do mal para justificar um clima de confrontação no qual, aliás, só perde quem tem de fato algo a perder).

A barbárie não interesse a ninguém que tenha uma visão pacifista e harmoniosa da sociedade. A atuação fora do Estado de Direito implica a normalização da violência e num cenário desses os próprios justiceiros poderão justificar as suas atrocidades com base em interpretações subjetivas moldadas pela emotividade. Enquanto não houver uma real compreensão de que quem lincha um criminoso é igualmente criminoso, o problema continuará sem solução. Sabemos bem que a complexidade das interações humanas num país com fortes discrepâncias é um terreno fértil à violência sectária: é o homofóbico que, justiceiramente, espanca o homossexual por considerá-lo uma aberração; é o homem que abusa da mulher simplesmente por uma questão de papel histórico; é o indivíduo que maltrata animais por considerar suas vidas inferiores e menos sagradas; é o policial que já entra nos ambientes de exclusão com a ideia pré-concebida sobre a população negra; são indivíduos cansados da exposição ao risco que desferem sua fúria acumulada contra o larápio reincidente que furta insignificâncias materiais. Há inúmeras situações em que a atuação da justiça imediata de uma população vingativa e embrutecida pode perpetuar as suas próprias barbáries justiceiras. A concretização desses atos por quem incorpora discursos populistas de ódio enche de culpa os próprios autores desses discursos. É por isso que temos de afastá-los do debate público não pela censura, mas reforçando uma argumentação consubstanciada que talvez a médio prazo consiga remetê-los ao ostracismo, à irrelevância, para que deixem de ser ouvidos. Paralelamente, devemos exigir dos representantes públicos medidas eficientes de mitigação da pobreza e de segurança pública, sempre dentro do Estado de Direito e com sensibilidade social.

Esta sucinta obra é um pequeno contributo ao debate sério e preocupado. Não ofereço soluções mágicas, mas apresento um ponto de partida que, embora elementar, me parece razoável. A ideia principal é que não se faz paz com guerra e não se combate violência com brutalidade. Também não se constrói uma sociedade saudável e pacífica negando o acesso da maioria da população a uma vida digna. Há uma guerra de classes travada no Brasil. As ruas são o cenário das suas batalhas. A criminalidade é o produto mais explosivo das injustiças sociais. Ao falar em direitos humanos, não me refiro apenas a métodos punitivos. É algo muito mais abrangente: direitos humanos implicam necessariamente o reconhecimento das condições básicas de vida dos indivíduos. A curto prazo podemos aparar os galhos do problema, mas a luta já começa perdida se não tivermos a sincera intenção de eliminá-lo pela raiz. Saber identificar essa raiz é um desafio gigantesco no meio de uma fumaça intoxicante que impede uma visão ampla do contexto socioeconômico, mas nos darmos por vencidos não é uma opção.

A abordagem deste livro tem como foco o entendimento público sobre as origens da criminalidade e o tratamento das suas consequências, salientando sempre a importância dos direitos humanos e de um debate público racional e equilibrado. A falta de referências à atuação policial é propositada. Este já é um assunto deveras delicado e falar da polícia implicaria um aprofundamento em questões que suscitam ainda mais discórdia. Há vários estudos que mostram a insustentabilidade de uma polícia militar que atua obedecendo a uma lógica de guerra e vê em cada cidadão um potencial inimigo. O fato de a polícia brasileira ser a que mais mata e a que mais morre no mundo é um indício inequívoco de que é necessário reorientar a lógica de atuação dos corpos policiais, começando pela sua desmilitarização, um processo que já é discutido e terá inevitavelmente de ser levado em conta. Este é um tema para um outro livro inteiro que aprofunde o problema da brutalidade policial e sua ineficácia no combate à criminalidade, o que foge ao objetivo central deste livro. Reitero que políticas de mitigação da pobreza e da exclusão social devem ser alavancadas paralelamente a políticas de segurança de aparatos que saibam respeitar o cidadão e que compreendam a necessidade de se atuar dentro do Estado de Direito. Alcançar essa meta depende do próprio entendimento de um povo que se acostumou por um lado a temer a polícia e por outro a aplaudir as suas ações ilegais que configuram autênticas atrocidades e retiram a credibilidade do Estado enquanto promotor de segurança pública.

Criminalidade no Brasil: Um Desafio HumanistaOnde histórias criam vida. Descubra agora