Para começar, é preciso que todos entendam que ninguém defende bandido. Reconhecer a necessidade de garantir o Estado de Direito não significa defesa efetiva de criminosos. Isto deveria estar absolutamente digerido por todas as pessoas que por algum motivo decidem participar no debate sobre o tema da criminalidade. Deveria ser a mais pacífica das conclusões. Mas não é. Por mais que nos expliquemos quanto a essa questão, as pessoas que assimilaram os discursos demagogos continuam repetindo exaustivamente que os bandidos são defendidos pelo pessoal dos direitos dos manos. Parece-me gravíssimo desdenhar dos direitos humanos a ponto de a referência a eles ser feita com esse trocadilho insensato. No Brasil, os métodos punitivos são obsoletos e comprovadamente ineficazes. Para quem é adepto de uma boa vingança, de uma carnificina de bem, não há nada melhor do que o cenário atual. Embora haja toda uma retórica que se alimenta na ideia de que o Brasil é o país da impunidade, a verdade é que as pessoas ligadas ao crime violento não têm uma esperança média de vida prolongada. Estão condenados pelo inevitável destino de atuar perigosamente. Cometer crimes continua não sendo um bom negócio para quem não possui grandes fortunas. A cultura de violência e de vingança defendida pelos Bolsonaros da vida é um agravante de todo o caos social de uma sociedade que tem 160% de lotação dos seus presídios e uma desigualdade socioeconômica obscena. Não teremos reais melhorias na segurança sem uma mudança de paradigmas quanto à distribuição de renda. A realidade é implacável quanto a isso.
Entretanto, tanto quanto agravar a situação, os discursos de ódio escondem algo tenebroso: o total vazio argumentativo. Os indivíduos que os propagam não estão minimamente interessados em atuar no sentido de procurar soluções concretas e razoáveis para o problema. Seu interesse é meramente imediatista e emocional, não passando de um desabafo agressivo. Perante a gravidade da situação, os desabafos são até compreensíveis; as pessoas estão cansadas de tanta insegurança e atrocidade. No entanto, eles nunca poderão configurar contributos para o desenvolvimento da questão. Desabafos não têm valor científico e não têm aplicabilidade jurídica. Só alguém desprovido de lucidez pode acreditar que os discursos de ódio servem para substituir séculos de estruturação do Direito. Por mais absurdo e surreal que possa parecer, a maioria das pessoas parece acreditar no valor superior dos discursos de ódio sobre o Estado de Direito. Convencem-se disso diariamente enquanto se negam a pensar. O exercício dispendioso de queimar neurônios desenvolvendo linhas argumentativas parece não ter a atração de um bom desabafo que parece tirar pesos das costas e desobstruir a respiração. Negar-se a pensar é um direito. Ninguém deve ser obrigado a se recolher à consciência e passar horas tentando construir argumentos coerentes. No entanto, essa desobrigação tem suas implicações. Uma delas é a incapacidade do indivíduo que não pensa de participar do debate sobre um problema complexo. Preferindo o desabafo instantâneo, ele não terá como contribuir positivamente na resolução do que quer que seja e deveria saber retirar-se para não atrapalhar. Todavia, o que acontece é exatamente o contrário: os que se negam a pensar são justamente os que mais querem se impor nas discussões. O poder atrativo de frases raivosas de efeito, sempre com o apelo justiceiro, é intoxicante. O que poderá agarrar-se mais às mentalidades enferrujadas, a máxima bandido bom é bandido morto ou uma extensa e enfadonha argumentação erudita toda gongórica? Perante um população que se nega a pensar mas que arrogantemente exige respostas imediatas e simplistas, o que poderá ter mais sucesso que o carisma mórbido dos propagandistas do ódio?
Dentro de uma sociedade que se pretende democrática – uma democracia bem duvidosa, diga-se –, é insustentável que o povo não participe ativamente na resolução dos seus problemas. É do vital interesse do cidadão comum que ele esteja capacitado intelectualmente para poder exercer a sua cidadania. Mas num país em que a educação é tão mal tratada, tal cenário torna-se quase utópico. A maioria das pessoas não quer contribuir; quer respostas simples a perguntas fundamentadas em pura demagogia. Eis alguns exemplos da negação à racionalidade:
E se um bandido matasse a sua mãe?
Eu queria ver como ficaria essa sua conversa de direitos humanos se alguém estuprasse a sua irmã.
Quer defender bandido? Vá visitá-lo na cadeia. Quer sustentar bandido? Doe seu dinheiro para ele ou o adote.
Quer dar liberdade para bandido? Então me dê a liberdade de ter uma arma.
Acha que bandido é coitadinho? Adote um quando ele sair da cadeia.
Direitos Humanos servem única e exclusivamente para defender criminosos.
Direitos Humanos defendem a nossa liberdade? Então por que me proíbem de ter uma arma?
Direitos Humanos só servem para encher o bolso de advogados e ativistas.
Todos esses exemplos são reais e preenchem diariamente o espaço do que deveria ser uma troca de argumentação séria. Ora, quem se limita a esse nível rasteiro está realmente interessado em colaborar? Ou estará apenas tendo uma postura lamentavelmente nefasta que só serve para alimentar rivalidades inúteis? Só com a negação da própria racionalidade uma pessoa pode não perceber a armadilha contida nesses desabafos. A resposta às perguntas retóricas são extremamente fáceis, embora talvez pouco satisfatórias para quem defende a vingança como política pública: como já disse, caso alguém violasse a minha irmã ou matasse a minha mãe, eu perderia a cabeça. Sairia do meu estado de consciência e me tornaria uma pessoa perigosa. É quase certo que tentaria vingar-me com as próprias mãos, fazendo o criminoso pagar da pior forma pelo seu crime. E é exatamente por isso que eu deveria ser afastado das decisões inerentes à punição a ser aplicada ao criminoso. A simplicidade da resposta comprova que quem fez a pergunta não se interessou em avançar além de um nível inicial de pensamento. O nível mais básico, mais elementar. Um nível que é apenas um ponto de partida, enquanto querem fazer dele um ponto de chegada. É dramático querer transformar introduções em conclusões, mas é exatamente isso que têm feito do alto de uma boçalidade cacofônica.
Todos nós que temos o privilégio de sentar numa poltrona confortável dentro de um quarto bem ambientado, com o bucho cheio de comida suculenta acessível a todo instante, deveríamos sentir a obrigação de desenvolver pensamentos mais aprofundados antes de participar de debates sobre questões socialmente imprescindíveis. Problemas complexos exigem soluções complexas. A alternativa razoável é não atrapalhar. Mas as pessoas preferem dar um contributo negativo quando falam muito e não têm nada a dizer. Defendo a participação popular nas questões vitais da organização social. Meu modelo desejado de democracia é o popular, em que os instrumentos de decisão estejam verdadeiramente sob o controle do povo e em que as comunidades tenham voz ativa e consequente. Tenho total aversão a ambientes elitistas que se utilizam de tecnocracia ideologicamente comprometida para decidir acerca da vida pública. Esse tipo de questão deve ser discutido com o povo e não estar limitado a gabinetes fechados. E é exatamente por isso que defendo um comprometimento se preciso obsessivo com metas educacionais. Uma sociedade séria e equilibrada, que poderá ser chamada talvez de democrática, é a que incentiva genuinamente os seus cidadãos à instrução para que possam ser membros ativos do desenvolvimento coletivo. Vejamos o que é a realidade brasileira em relação a isso para termos noção da gravidade da situação. Talvez não baste o conhecimento empírico porque bem sabemos que as pessoas que vivem em ambientes de exclusão também absorvem os discursos de ódio. O atual cenário de polaridade política que se acometeu sobre o Brasil oferece pouco espaço para a razoabilidade, de forma que os elementos demagogos e populistas desfrutam de ampla aceitação e encontram espaço para a propagação das suas ideias. Mas analisando-as objetivamente, regresso à constatação inicial: os discursos de ódio carregam o vazio. Não oferecem nada além da possibilidade de alívio imediato por meio de desabafos inconsequentes. Não há nada concreto advindo desses discursos. Perante eles, poderei repetir centenas de vezes que não tenho nenhum interesse em defender bandidos e ainda assim serei acusado de os defender. Pessoas que nunca se preocuparam em entender o que são os direitos humanos irão chamá-los de direitos dos manos achando que estão empreendendo algum tipo de raciocínio genial, e estarão tão intoxicados pelo orgulho da própria ignorância que não se darão conta da bizarrice que apregoam. Perante um problema tão grave, é triste que as pessoas não se sintam verdadeiramente estimuladas pelo desafio de unir esforços para encontrar soluções, preferindo a limitação de clichês e frases de efeitos já tão ultrapassadas. Atuar contra os direitos humanos é como ser um cachorrinho agitado ladrando contra os direitos dos animais. É um tiro num escuro tão profundo que os impede de ver que estão apontando para o próprio pé.
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Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista
Non-FictionO problema da criminalidade é um dos grandes desafios da sociedade brasileira e os tremendos fracassos sucessivos apontam para a necessidade de um novo paradigma que reoriente as políticas de segurança pública, os métodos punitivos e invariavelmente...