Redução da maioridade penal: construir mais vias diminuirá o trânsito?

145 4 1
                                    

O Brasil é, tradicionalmente, o país do mediatismo e do apelo emocional. Vários países o são. Mas o Brasil tem um quê especial no assunto, algo que provoca ainda mais precipitação: a gritante incapacidade de discernimento da esmagadora maioria da população.

O analfabetismo funcional impera. É até preferível chamá-lo analfaburrismo devido à total negação em reconhecer as lacunas intelectuais. Dizer isto sempre soará arrogante, mas é uma evidência. A verdade é que há pouquíssima gente capacitada para discernir acerca de questões mais complexas e reconhecer – e lamentar – essa situação não é ser arrogante, mas corajosamente realista. Mais uma vez entramos no problema da grotesca ineficácia da educação brasileira, que não está estimulando ninguém a pensar de forma equilibrada mediante a utilização dos mecanismos intelectuais de que dispomos. Para assuntos complexos precisamos de respostas complexas, e tal as desenvolvermos é fundamental que tenhamos capacidade intelectual. Caso contrário, aceitaremos explicações simplistas que, além de ineficazes, podem ser muito perigosas.

A maioridade penal é um assunto deveras sensível por resultar da criminalidade praticada por menores de idade. Aliás, por crianças e adolescentes – a campanha atual flexibiliza bastante a condição de menor.

Um estudo bem conhecido do Datafolha apontou que 93% dos paulistanos são a favor da redução da maioridade penal, o que já era de se esperar quando entregamos uma questão tão sensível e complexa a uma população tão amedrontada, embrutecida, emocionalmente desequilibrada e intelectualmente despreparada. Não que ser a favor dessa redução confira atestado de burrice a alguém. De fato há muita gente inteligente e pensante que se posiciona – a meu ver equivocadamente – a favor dela. Mas é inegável que a esmagadora maioria da população não tem capacidade para tecer comentários relevantes a respeito e desconfio muito de que as cabeças pensantes que defendem tal causa não sejam provenientes das fileiras conservadores e autoritárias da esfera política brasileira, gente que não tem nenhuma sensibilidade social.

O que de fato mudaria com a redução da maioridade penal? Os menores de idade deixariam de cometer crimes – que é o que supostamente desejamos – ou apenas reforçariam o contingente carcerário brasileiro, atualmente o quarto maior do mundo? A resposta me parece óbvia, sobretudo se observarmos a dura realidade. Os criminosos adultos deixam de cometer crimes por estarem incluídos na idade penal? E os criminosos menores de 16 anos, como ficam? Vamos começar a reduzir gradualmente a maioridade penal até chegar aos 12? Talvez 10?

Há várias questões importantes e uma delas é: até quando a sociedade vai achar que o atual modelo de punição prisional é producente e sustentável? Antes de começarmos a bradar justiceirismo histérico pelos quatro ventos deveríamos alicerçar um pouco o debate. A população carcerária brasileira é a quarta maior do mundo com cerca de 500 mil presos, mas sua situação é muito mais grave que a da Rússia, apesar desta ter 800 mil. A diferença está na capacidade dos presídios. Enquanto na Rússia há 84% de lotação, no Brasil ela chega a 166%. Há muito mais presos do que o que seria comportado pela totalidade dos estabelecimentos prisionais, deteriorando ainda mais o ambiente no interior (e no exterior) deles.

E aqui entramos na questão da insustentabilidade das políticas punitivas. Enquanto o Brasil não perceber que a punição não deve ser, necessariamente, negativa, tudo continuará igual. Esta abordagem em particular levanta os cabelos dos sedentos por vingança e dos que acham que não deve haver direitos humanos para criminosos. Se dependesse deles, haveria pena de morte já! Os que não conseguem controlar o próprio desequilíbrio emocional devem ficar bem longe de questões que requerem a mínima calma e lucidez.

Falar em punição positiva não é falar em impunidade, embora o calor das discussões ou mesmo a desonestidade intelectual não permitam o desenvolvimento da ideia. Subverter uma ordem tão enraizada é complicado, especialmente quando ela está bem alicerçada por condições socioeconômicas e culturais gravíssimas, dentro e fora das prisões.

O que seria, então, uma punição positiva? É praticamente senso comum conceber a prisão como algo que deve ter, invariavelmente, caráter vingativo, fazendo o condenado pagar da pior forma pelo seu crime. Assim, esquecemos de que um condenado submetido às condições desumanas das prisões brasileiras tende a ser uma pessoa perdida para sempre. Isso pauta a insustentabilidade da punição negativa. A punição positiva só seria possível com a mudança de paradigma, algo muito complicado face ao ruído do ódio e do desequilíbrio emocional, à falta de discernimento e razoabilidade de quem se debruça sobre a questão e à realidade brasileira a todos os níveis. Falar hoje de recuperação de criminosos é intolerável dentro dos debates superficiais moldados pelo mediatismo e pela total falta de orientação lógica. Mas um país que pretende desenvolver-se e aproximar-se do que há de mais avançado no mundo não pode ignorar esta questão. Os criminosos condenados devem ser punidos positivamente com programas de recuperação. Só assim as políticas prisionais podem ser consideradas verdadeiramente eficazes. Caso contrário, será sempre uma tragédia humana, tanto para a vítima como para o condenado.

No entanto, não podemos esquecer os casos de psicopatia. Mas o curioso é que nos tentam realmente convencer de que ela é uma doença de pobre. Sim, nos tentam convencer disso! Ora, parece mesmo que a psicopatia é contagiosa e se propaga dentro dos ambientes de pobreza onde as pessoas já nascem desprovidas das necessidades básicas. Passou a ser comum chamar psicopata a todos os criminosos. Os casos desse transtorno registrados nas elites são raríssimos, certo? Ou são altamente ignorados? Há estudos que assemelham o número de psicopatas na direção de empresas ao existente nas prisões.

É preciso separar a psicopatia clínica de meras terminologias coloquiais. Há casos verdadeiros desse transtorno (que a psiquiatria reluta em considerar doença) dentre tanta barbárie noticiada diariamente. Mas chamar psicopata a todos os criminosos é perigoso, uma vez que se está decretando um estado psicológico que, se confirmado, deve ter tratamento adequado. A relação feita entre tal quadro clínico e a pobreza é uma forma muito cruel de estigmatização social. Estima-se que a presença de psicopatia na população geral ronde os 4% (com maior incidência sobre os homens), podendo ultrapassar os 60% em ambientes prisionais. Mas o que a despoleta? Ou melhor, quais as consequências sociais da pobreza e da exclusão?

Um modelo punitivo minimamente sustentável deve distinguir quadros clínicos de desvios comportamentais causados por ambientes degradados e deve configurar uma tentativa de recuperação dos indivíduos. Aglutinar gente com sérios problemas mentais ou comportamentais em selas sufocantes e carcomidas só garante a gravidade da situação. Esperam realmente que delas saiam cidadãos arrependidos e conscientizados? Jogaremos adolescentes no meio de adultos e esperaremos o quê? Que se recuperem? Que morram lá dentro?

A impunidade e a negligência do Estado são igualmente condenáveis. Mas o caráter punitivo deve diferir. E quando falamos em impunidade, devemos perceber que ela está ligada sobretudo às classes mais altas, porque um país com o quarto maior contingente carcerário do mundo e que praticamente triplicou este mesmo contingente nos últimos vinte anos não pode ser nenhum antro de impunidade. Muito pelo contrário, até. O problema é a abordagem espetacularizante que a mídia cria em torno da criminalidade.

A solução seria construir mais presídios?

Respondo com uma analogia: resolveremos os problemas do trânsito com mais avenidas ou com transporte coletivo de qualidade?

No caso, a educação e a redistribuição de renda seriam o transporte para uma sociedade mais avançada e socialmente sustentável e inclusiva. Ninguém falou que a solução seria mágica e rápida. Ela implica mudanças sérias nas abordagens à questão. Se fosse fácil de resolver, o problema não seria tão grave.

Por fim, dirijo-me aos justiceiros de plantão, aos vingacionistas que defendem uma postura de dente por dente e olho por olho: coloquemos um pedófilo, estuprador e assassino frio solto numa praça cheia de gente que sabe o que ele fez. O que resultar disso indicará com exatidão o nível de desenvolvimento do povo em questão e o quão potencialmente criminoso ele é.

Criminalidade no Brasil: Um Desafio HumanistaOnde histórias criam vida. Descubra agora