Numa edição do programa Fla-Flu da Folha de São Paulo, em 2016, antagonizando-se à então presidenta da União Nacional dos Estudantes, o ativista dos interesses das elites brasileiras, Kim Kataguiri, afirmou que as escolas públicas são centros de recrutamento de traficantes. O deputado Jean Wyllys já o havia classificado de analfabeto político mirim. Kim parece fazer questão de passar a vida dando-lhe razão. Decidi pegar nesse seu arroubo de boçalidade para falar um pouco da estigmatização que as elites impõem aos jovens pobres do Brasil.
Estudei em sete escolas antes da universidade. As duas primeiras eram privadas, mas a partir dos nove anos só frequentei estabelecimentos públicos. Cinco, ao todo. Alguns decadentes e carcomidos, em ambientes de forte exclusão social. Eu era o branquelo ruivo no meio de uma maioria de negros favelados. Costumo contar sempre aos meus amigos europeus a história marcante do meu primeiro ano no colégio de primeiro grau Tancredo Neves em Aracaju. Inicialmente, tudo me dava medo. Do caminho até ele ao seu aspecto e condição. Sentia-me presa fácil, mas logo na primeira semana eu já me havia tornado mascote da galera. Todos me adoravam. Sempre fui muito mais respeitado no ambiente escolar do que nos entornos de onde residia.
Conheci muita gente com sorte distinta. Uns poucos não tiverem forças suficientes e entraram na vida do crime não devido à escola, mas à realidade degradante em que cresceram. Alguns mataram; outros morreram. A grande maioria seguiu sua humilde vida tendo o acesso à educação sabotado pela sociedade. Vários, com seus 13, 14 ou 15 anos, já eram obrigados a conciliar os estudos com trabalhos tão miseráveis que espero não mais existirem. Mais cedo ou mais tarde acabariam de vez preenchendo os postos laborais menos reconhecidos e prestigiados. São os genuínos heróis de um martírio inconsequente.
Intelectualmente, aprendi muito pouco nas escolas públicas. Sucateadas e desprezadas, sempre possuíram um nível rasteiro. Mas inversamente proporcional ao conhecimento adquirido foi a quantidade de amizades feitas. Algumas duram até hoje, mesmo tendo-me estabelecido na Europa. Conheci algumas das pessoas mais amigáveis, inteligentes e humildes na escola pública. Pessoas que, em função das circunstâncias, aprenderam a viver uma vida cheia de remendos e improvisos, o que lhes rendeu uma refinada capacidade extra-escolar inacessível a playboys de Kinta Kategoria.
Senti-me insultado por esse sujeito pedante, mas ao mesmo tempo senti-me sortudo pela experiência de ter estudado em locais que me deram acesso direto e irrestrito à realidade de uma enorme parcela de crianças e adolescentes brasileiros, enquanto ele não faz mais do que repetir trechos de livros que nunca leu. Muito mais do que genuína preocupação com a formação dos jovens, o que ele quer é alimentar o ego da sua visão de gestão privada dos direitos humanos mais básicos.
A escola pública não fabrica traficantes. Ela fabrica mão-de-obra acrítica para ser explorada pelo capitalismo selvagem que esse sujeito defende com seus arroubos arrogantes. Ele reflete com perfeição o preconceito das elites contra um povo que é obrigado a se virar em ambientes sociais marcadamente degradantes de corpo e de espírito. Ambientes que fabricam criminosos a partir da humilhação e do desespero. Fui amigo de pessoas que viriam a cometer homicídios e que viriam a morrer na mão de outros criminosos ou da polícia. A escola pública aglutina vários tipos de mentalidade e de realidade em seu espaço, porque a maioria dos cidadãos pobres vive uma vida de martírio social e não de criminalidade ativa. Nada justifica a ação criminosa, especialmente as mais graves que atentam contra a integridade de outrem. No entanto, figuras como Kim Kataguiri não têm qualquer moral ou conhecimento empírico para julgar os jovens brasileiros afundados na exclusão e aliciados pelo crime, uma vez que representam tudo o que tende a agravar essas situações de vulnerabilidade psicológica de pessoas que sentem desde muito cedo as amarguras de um mundo cruel. O ambiente escolar nesses contextos é fundamental para salvar vidas. Não apenas a das potenciais vítimas da criminalidade, mas também a dos próprios potenciais criminosos, que podem ser resgatados pela educação antes de se perderem definitivamente. Ofender a escola pública é ofender a juventude brasileira e sobretudo é atentar contra o que existe de possibilidade – embora rudimentar – de afastar os jovens de comportamentos violentos e criminosos. A educação é um direito humano (para Kim é um negócio), como a segurança. Ela pode ser um elemento positivo de formação social dos indivíduos e é assim que precisa ser tratada, para que potencialize a sua capacidade de combater pela raiz a criminalidade.
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Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista
Non-FictionO problema da criminalidade é um dos grandes desafios da sociedade brasileira e os tremendos fracassos sucessivos apontam para a necessidade de um novo paradigma que reoriente as políticas de segurança pública, os métodos punitivos e invariavelmente...