Uma das pautas defendidas pelos adeptos dos discursos de ódio é o direito ao porte de armas. Em primeiro lugar, deixo claro que não sou nenhum entusiasta do Estado como monopólio da violência. A própria existência de Estado é, para mim, questionável. No campo das ideias, defendo que preferencialmente o Estado seja abolido e substituído pela interação cooperativa comunitária. Minhas preferências quanto à organização da sociedade são claramente influenciadas pelos teóricos anarquistas do século XIX e XX. Defendo que todo o avanço da humanidade deve fatalmente chegar a algum estágio de anarquismo num futuro distante. No entanto, acredito que esse caminho longo é percorrido diariamente com cada pequeno passo. Estamos avançando lentamente. Às vezes até parece que recuamos, que retrocedemos. Mas a tendência continua sendo o progresso. Sem a busca pela utopia, não caminhamos. E não caminhar é morrer. Precisamos seguir em frente.
Mas deixo os devaneios ideológicos de lado. Debruço-me sobre uma realidade implacável que não tem oferecido grandes aberturas ao romantismo das ideias. Nesse cenário de guerra social de média intensidade, falar em liberalização de armamentos é mais que insensato; é tétrico. É falta de lucidez. É tentar sobrepor ideologias à realidade como se elas a substituíssem perfeitamente. Muitos falam da Suíça. Há discursos irresponsáveis que comparam realidades distintas como se o que existisse numa fosse aplicável a outra. Provavelmente a Suíça teve menos casos de criminalidade violenta nos últimos cem anos do que o estado de São Paulo na última semana. Conheço a Suíça e conheço quase todos os países europeus. Mesmo os mais problemáticos são incomparáveis com a realidade brasileira. São quase mundos diferentes, com exceção de certas bolhas de exclusão e de conflitos étnicos.
Qual a verdadeira intenção dos adeptos das armas? Defenderem-se? Acreditam mesmo que estão capacitados para isso? Acreditam que ter uma arma basta? E mais importante: acreditam que estão isentos de desvios comportamentais e que não correm o risco de cometer os seus próprios crimes?
O que aconteceria num cenário de todos contra todos? O que o dito cidadão de bem que tem muito a perder teria a ganhar se pudesse armar-se para fazer frente à criminalidade de indivíduos experientes que nada têm a perder?
O Brasil é um país amedrontado, onde as pessoas têm os nervos à flor da pele. Um país em que pequenas brigas de bar ou de futebol acabam em morte com certa frequência. Quem garante que o cidadão comum dará sempre bom uso a uma arma? Quem garante que não a disparará contra a pessoa errada? Quem garante, aliás, que terá coragem de disparar contra um bandido? Falar em posse de arma de fogo em discussões na Internet é muito fácil, mas na hora do perigo, quando a morte ronda e assobia nos ouvidos, não é como um jogo violento de videogame. Sabem o que é matar alguém? Teriam coragem de matar um bandido? Conseguiriam depois viver com a lembrança? Quando não estão sujeitos à situação podem dizer o que bem quiserem com base na vontade pessoal imediata e não na experimentação. Não se deve subestimar o peso de uma arma, que talvez seja o mesmo do de uma consciência comprometida pela culpa. O Brasil não tem condições de liberar a posse de armamento e fazê-lo seria uma autêntica tragédia. Ou alguém acredita que a eventual paridade oriunda da distribuição de armamento pela população estabeleceria algum tipo de paz de cemitério ou de guerra fria em que todos se respeitassem mutuamente e relutassem na hora de avançar? O povo brasileiro está cansado e, infelizmente, não quer pensar. Quer que surja um guru fajuto para dizer coisas sem nexo e sem responsabilidade. Vedetas da demagogia e do populismo que sabem que podem tirar dividendos políticos do desequilíbrio popular. Em lugar nenhum do mundo esse tipo de vedeta conseguiu transformar positivamente a realidade violenta. Pelo contrário. A história está cheia de exemplos trágicos. Desconfio de que os defensores da posse de arma tenham intenções não tão inocentes assim: pensar em vingança contra bandidos pode ser um grande passo para a consumação de um ato que é, inequivocamente, criminoso.
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Criminalidade no Brasil: Um Desafio Humanista
Non-FictionO problema da criminalidade é um dos grandes desafios da sociedade brasileira e os tremendos fracassos sucessivos apontam para a necessidade de um novo paradigma que reoriente as políticas de segurança pública, os métodos punitivos e invariavelmente...