"Crianças, a ficção é a verdade dentro da mentira, e a verdade desta ficção é bem simples: a magia existe."
Stephen King
- Ela me disse que era chá! - Glorinha ergueu as mãos para o alto, com um semblante visivelmente incrédulo.
- Pois era whisky... - Patrício colocou as duas mãos na cintura enquanto olhava para baixo, sua fala se assemelhava mais a uma tentativa de se autoconvencer - Whisky! Deus do céu... Quinze anos! - exclamou, ainda fitando o chão, enquanto mordia o lábio inferior com nítida impaciência.
- O whisky? - Gloria perguntou, erguendo a sobrancelha direita.
- Pelo manto de Cristo, Glorinha, não... Samanta. Samanta só tem quinze anos. Mas já lembra o diabo do Teodorico.
Teodorico era um velho tio alcoólatra da família Maia, muito afamado por criar confusões nas festas de aniversário e casamento dos seus familiares por beber demais.
- E o que você vai fazer com ela? - Glorinha se afastava para pegar as panelas do almoço, que ainda estavam postas na mesa da sala de jantar.
- Como o bobo que sou com aquela menina, vou conversar com mais uma vez. E se não adiantar...
- Patrício refletia enquanto abotoava seu paletó azul marinho. - Um convento talvez seja a solução... - riu sozinho ao terminar a frase.
Glória acompanhou a risada do patrão, ciente de que Patrício sabia a asneira que havia dito.
- Pois ela colocaria fogo no convento! - completou, não contendo as gargalhadas, enquanto abria a porta da frente, retirando-se do local.
Patrício Dante Maia era um conhecido viúvo da cidade de Clareira de Misé, proprietário do jornal da cidade e um famoso contador de histórias. As crianças costumavam se reunir na calçada do Jornal da Clareira, para ouvi-lo contar as lendas da cidade, e curiosos fatos - sem dúvida, mero fruto de sua imaginação - que envolviam o passado daquela pequena cidadezinha afastada das metrópoles. No entanto, a verdade sobre o seu próprio passado, era firmemente ocultada por ele, extremamente discreto, quando tratava-se de seus problemas pessoais, e sobre a morte de sua esposa, Aurora. Aurora Maia morreu de pneumonia, quando ainda era muito jovem, ao completar seus vinte e três anos. Deixando para trás seu marido e duas filhas pequenas, Samanta, a mais velha e mais parecida com a mãe, e Mabel.
Como em quase toda cidade muito pequena, as fofocas e os rumores a respeito dos moradores circulavam rapidamente, dando vazão à criatividade de quem repassava tais mexericos. Gerando assim, especulações diversas. Aurora foi uma famigerada vítima de tal situação, sendo assim, impossível encontrar um só habitante de Clareira de Misé que não soubesse quem era Aurora Maia, e o que ela fazia. Quando a mesma faleceu, Patrício se viu desesperado, tanto pela morte da mulher de sua vida, quanto pela perspectiva de futuro daquele dia em diante. Sozinho, cuidando de duas garotas pequenas. Na época, Samanta tinha apenas seis anos, e Mabel, três. Além de tais infortúnios, Patrício ainda convivia com a infelicidade dos mexericos a respeito da sua esposa.
Tudo piorou quando, cansado dos malditos comentários, ele entrou em uma briga com uma velha senhora chamada Maria de Lourdes, na mercearia do Zé Galo, enquanto comprava mantimentos para a sua casa.
Foi levada por Satã... - disse a velha senhora resmungando, quando Patrício saía da mercearia carregando duas sacolas. Naquele dia, em especial, fazia apenas três semanas que Aurora havia lhes deixado. Desequilibrado devido ao luto, e cansado de ouvir tais falácias, Patrício jogou suas sacolas no chão, enquanto avançava contra a mulher rechonchuda que, aflita, observava o olhar de ódio com que Patrício a fitava.
- Repita o que você disse! Sua velha baranga. - Patrício a segurava pela manga do vestido. E bastou este grito, para que toda a vizinhança se empoleirasse nas extremidades das grades de suas varandas, assistindo a briga atentamente.
Ao notar que tinha plateia, a velha encheu o peito para não parecer que havia se acovardado.
- Foi levada mesmo! Aquela bruxa! E suas filhas devem ser duas bruxas também - A velha gritava, de forma escandalosa, para que todos ouvissem do que se tratava a discussão. Afinal, era uma unanimidade entre os moradores da Clareira: Aurora era uma bruxa e, sendo uma, suas filhas herdariam os dons da mãe.
- A vontade que tenho é de te matar. - Patrício disse, dessa vez, com mais calma, enquanto lentamente tirava as mãos das mangas do vestido florido de Maria de Lourdes. - Para que você vá para o inferno, de onde veio. - Ele agora fitava a multidão que se formava ao redor de ambos. - Mas não vou manchar ainda mais a reputação da minha família, e aumentar a infelicidade das minhas filhas.
- Duas bruxas... - Maria de Lourdes cuspiu no chão, ao terminar de falar.
- Que você caia na mais profunda desgraça, velha miserável. E que todo o veneno que você solta, volte contra você. É o que eu desejo. - Patrício recolheu as sacolas que havia deixado no chão, enquanto ouvia o zumbido dos cochichos de todas as pessoas que assistiam à cena. Com as sacolas em mãos, marchou com a cabeça erguida, segurando as lágrimas que, prontamente, esperavam para descerem, assim que ele pusesse os pés em casa.
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A última linhagem
Mystery / ThrillerA família Dante Maia esconde um grande segredo. Não é novidade alguma para qualquer morador da minúscula e pacata cidade de Clareira de Misé, onde os ventos têm ouvidos e, onde há não muito tempo atrás, uma famosa curandeira - ou bruxa, como todos p...