Fazia uma tarde ensolarada naquela primavera de 1988, e as poucas ruas de Clareira de Misé estavam enfeitadas pelas folhas caídas pelo chão. Era uma cidade arborizada e muito bem cuidada por seus moradores, embora todos eles tivessem a língua maior do que a boca, como sempre repetia Aurora e Samanta fazia questão de manter a frase da mãe em sua memória. Em dias assim, em que o céu estava totalmente azul e uma brisa suave era convidativa o suficiente para que as pessoas saíssem para fora das suas casas, Mabel e Samanta sentavam-se no muro da casa e brincavam de atirar cascalhos. Esta era uma velha brincadeira que as duas cultivavam desde muito pequenas. Competiam de modo fervoroso para verem quem lançaria mais longe.
- Hoje estou me sentindo com sorte – Mabel procurava cascalhos no jardim da casa, que ostentava esplêndidos lírios e tulipas, as flores preferidas de Aurora.
- Esse jardim é a cara da mamãe... - Samanta pensou alto demais, enquanto também recolhia cascalhos em meio às flores.
- Você anda nostálgica... - Mabel abaixou-se para amarrar os cadarços do seu All Star rosa bebê.
- É o bilhete. Não paro de pensar nele.
- E se entrássemos no quartinho para procurar outras coisas? Outro bilhete, talvez. - Mabel tirava do bolso do short um chiclete sabor tutti-frutti. - Quer?
- Não... - Samanta erguia as mãos para espantar os mosquitos que rondavam por aquela parte do jardim. - Acho que deveríamos ir ... – confirmou, em um tom de voz mais baixo, ao ver que Glória se aproximava. - No quartinho. Hoje. - concluiu com um sussurro.
- Agora?
- Não, hoje à noite... obviamente – olhou rapidamente para Glória, para que Mabel entendesse o recado.
- Certo.
As duas continuavam cochichando em um tom baixo, quando Glória se aproximou de ambas, com um regador.
- Não vão brincar com os cascalhos? - Glória perguntou, colhendo algumas flores para colocar no vaso da sala.
- Já estamos indo. - Samanta respondeu, fixando seu olhar em Mabel, para certificar-se de que ela não diria mais nada sobre o assunto anterior.
As duas saíram com seus cascalhos nas mãos, entreolhando-se de maneira risonha, ao notarem que ocultavam um segredo só delas. Sentaram-se no muro recém pintado de azul, na entrada da casa, e remexeram-se até se sentirem confortáveis o bastante para dar início ao jogo, que acreditavam ter sido inventado por elas. Samanta jogou o primeiro cascalho, e as duas continuaram a fazer seus arremessos por um longo tempo, em silêncio.
Samanta pigarreou.
- As garotas da sua sala também pegam pesado com aquela história idiota de que a mamãe era uma bruxa? – perguntou à Mabel.
- Um pouco.
- Não ligue para elas, tudo isso não passa de uma grande mentira. - Samanta segurou, pela primeira vez na mão da sua irmã de maneira afável, após mais um dos seus lances.
- É, não ligo muito. Elas gostam de mim porque eu contei à elas que você tem uma Polaroid.
- Essas garotas são umas interesseiras, Bel.
- Mas funcionou, não ando mais sozinha. - Mabel completou, com uma piscadela.
- Se prefere assim. - Samanta jogou seu último cascalho, e este voou longe o bastante para que ela ganhasse a competição. - Nem pense em tocar na minha câmera, aliás. - Sentenciou, antes de descer do muro com um habilidoso pulinho.
- Desisto dessa brincadeira boba, você sempre ganha. - Mabel reclamou, também descendo do muro, com certa dificuldade.
Após o jantar, reunidos na sala de TV, a família assistia ao telejornal. Samanta folheava sua revista preferida, e Mabel fazia as atividades da escola, sentada junto à mesa de centro.
- Bom... Foi um dia cansativo para mim. Vou subir para deitar... - Patrício disse, desligando a televisão.
- Precisa de alguma coisa, Patrício? - Glória levantou-se do sofá de forma abrupta.
Nesse momento, Mabel e Samanta entreolharam-se, ao lembrarem-se do incidente daquela manhã. Glória, ao perceber tal troca de olhares, sentou-se novamente, disfarçando seu constrangimento.
- Não, Glorinha. Estou ótimo. Muito obrigado... Você sempre é tão atenciosa.
Mabel pigarreou, fazendo com que Samanta desse incontroláveis risos.
- O que houve? - Patrício olhou para trás, confuso com a reação das garotas.
- Nada. - Samanta respondeu de imediato, contendo o semblante risonho.
O rosto de Glória avermelhou-se de modo instantâneo.
- Boa noite, garotas. - Patrício respondeu, subindo as escadas com o copo d'água que sempre levava para o seu quarto.
O silêncio na sala foi absoluto em seguida. Glória levantou-se do sofá, ainda constrangida, e sem dar boa noite para as meninas, como fazia de costume, retirou-se do local.
- Ela está brava com a gente. - Mabel falou, após Glória sumir de vista.
- Amanhã nos desculpamos. - Samanta fechou depressa a revista cujo tema era modelos de carros. - Agora temos coisas mais importantes a serem feitas.
- O quartinho?
- Sim. Vamos. Depressa e... – segurou no braço de Mabel com força – Você tem que me prometer que não vai comentar com ninguém, está entendendo? Ninguém. Também vai ter que fazer algo novo para você.
- O quê? – Mabel demonstrou curiosidade enquanto assentia às advertências de Samanta
- Silêncio.
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A última linhagem
Mystery / ThrillerA família Dante Maia esconde um grande segredo. Não é novidade alguma para qualquer morador da minúscula e pacata cidade de Clareira de Misé, onde os ventos têm ouvidos e, onde há não muito tempo atrás, uma famosa curandeira - ou bruxa, como todos p...