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O vento forte da chuva de março ressoava para dentro da janela de Janete através de uma pequena fenda. O som se assemelhava a um longo uivo fantasmagórico. O piso negro e molhado por conta das extensas gotas de chuva refletia os raios que iluminavam o céu carregado. Provavelmente as principais ruas da cidade estão alagadas graças ao entupimento dos esgotos, em parte por culpa do governo que não promove campanhas para o povo não jogar resíduos sólidos nas ruas ou por não colocarem lixeiras pela cidade, em parte por culpa da própria população ignorante que continua jogando resíduos em bueiros a céu aberto. Janete não fechou a janela, ela apreciava aquele som, sentia-se tranquila, notava uma sensação de conforto por todo o seu corpo. A energia havia faltado em grande parte do bairro, mantendo metade da população local completamente no breu. Parecia por um momento que seria o fim do mundo, literalmente.
Janete deu um longo suspiro ao abrir uma garrafa Salton Moscatel. Despejou metade do líquido amarelo claro esverdeado em uma taça. Às vezes lamentava por não ter nenhuma alma com quem dividir o vinho. Afinal, até Tibbets¹ tinha um fantasma para compartilhar sua cerveja amarga. No entanto, em alguns momentos se sentia bem por não possuir um namorado. Gostava de ser solteira, sair quando e a hora que quiser sem dar satisfação a ninguém era o máximo para ela. Sentou no sofá de tecido suede e ligou o aparelho musical com um sensor que havia instalado em seu pulso. O aparelho Sommi prateado ligou e a música Downtown de Petula Clark começou a tocar. Algumas lágrimas escorreram pelo rosto alvo de Janete, não por causa de a música possuir um estilo melancólico, pelo contrário, a música era animada. Janete chorava porque essa música lembrava uma antiga série que ela costumava assistir via streaming.
Terminou de beber a taça de vinho e se deu ao luxo de enchê-la novamente. Sentiu um leve formigamento ao dar mais um gole e quase instantaneamente se sentiu mais leve. Se tivesse em um bar, provavelmente se sentiria também mais bonita. Voltou a se sentar no seu adorável sofá e gargalhou com o cuidado de não acordar os vizinhos. Quando se deu conta, a taça já estava seca de novo. Ficou entristecida e se levantou para colocar a garrafa no mesmo saco biodegradável no supermercado que comprara o Salton e colocar no lixo.
A música Downtown terminara de tocar. O mesmo sensor do aparelho musical também ligava a grande TV na parede, dessa forma, assim que a televisão fora ligada, o aparelho musical se desligou. Na verdade, Janete estava zapeando os canais porque o tédio tomara conta do seu ser, pois não havia nenhum programa relativamente interessante àquela hora.
Janete deixou a TV ligada na Cultura, enquanto o holograma do Chico Buarque tocava Apesar de Você. Aumentou o volume para que a música pudesse ser escutada por todo o ambiente.
Quando abriu os olhos, já era claro e a forte chuva havia cessado. Em algum momento durante a música Construção e os infinitos comerciais, Janete adormecera. Olhou pela janela e o movimento da rua já estava bastante intenso. Os ponteiros digitais acusavam 10h23. Agradeceu por estar de férias, parecia que a única semana de folga estava finalmente durando. Ela pensou em aproveitar para viajar, porém para onde? Não tinha dinheiro para viajar para outro estado e não se arriscaria a ir para Algodoal ou Salinópolis, era muito perigoso. O mais sensato era ficar em casa e relaxar. Ou pelo menos, tentar relaxar.
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A lua amarelada estava linda no céu negro. Parecia até que fora pintada, pensou Janete. Aproveitou que o sol tinha saído de cena e se dirigiu ao Nerd das Tavernas, um pub repleto de homenagens a diversos filmes, séries e livros de ficção científica. Desde 1984 até 1Q84. Ela se sentou em uma mesinha e olhou para a TV 8K de 60 polegadas. A TV exibia um episódio da terceira temporada de Lost, a série em que ela ouvira pela primeira vez a música Downtown. A qualidade de imagem era tão perfeitamente nítida, Janete pensou até mesmo que estivesse olhando através de uma janela. Será que eu fechei a janela?, ela pensou, mas não conseguia encontrar uma resposta.
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Os Crononautas
Ciencia FicciónViagens no espaço-tempo são apenas o começo das histórias de Crononautas. Com personagens bem construídos e com muita reflexão, as ideias expostas em cada conto não têm tempo certo para serem questionadas. Vida, morte, passagem do tempo, o futuro do...