Bruno
Bruno tirou o capacete e se sentou em frente ao enorme painel de controle. Era um tanto ridículo, mas ele se pegou olhando para seu reflexo nos visores e olhando sua aparência: os olhos castanhos estavam baços graças à viagem e às noites mal dormidas e o cabelo ruivo, que antes ia até os ombros, passara a ter um corte militar.
Praticamente uma vida se passou nesse tempo, pensou Bruno, suspirando pelo ano que teve de ficar perambulando na nave antes de desembarcar em Kepler, período necessário para a tripulação se recuperar da hibernação de quase meio século.
Todo mundo que conheci nem deve estar mais vivo, lamentou. Seus pais, amigos, irmão mais velho, todos ficaram num passado longínquo. E isso incluía o tio dele, Giuliano Olsen, que na época da missão era o diretor da NASA. Exatamente como todos lhe disseram antes do embarque na Hope 47, a missão em Kepler era mesmo uma empreitada sem retorno.
Deixando as lembranças de lado, Bruno voltou ao trabalho. Se apoiando com as duas mãos no painel, defrontou a infinidade de comandos na tela touch, que era desproporcional às funcionalidades do drone, que apenas voava, fotografava e filmava. Porém, o aparelho tinha aparência, cor e tamanho similares a uma águia, o que ressaltava a tecnologia e o design empregados em sua produção.
É bonito e convincente, mas duvido que a fauna daqui já tenha visto uma águia.
Como já o tinha guiado na Terra, os comandos não eram um mistério, mas a gravidade menor em Kepler, que era cerca de três quartos do diâmetro da Terra, dificultaria o voo do drone.
Com isso, para se acostumar, dirigiu o aparelho inicialmente ao redor do abrigo.
Vou aproveitar para tirar sarro, planejou Bruno, infantilmente.
Do lado de fora, vários colegas ainda terminavam de montar o hover. Filmou Alonzo fumando no refeitório, algo proibido pela capitã Petrescu. Depois, deu um rasante que derrubou o cigarro do colega.
– ... mas que...
O drone ficou distante demais para gravar o restante dos palavrões que Alonzo provavelmente disparou. Em seguida, Bruno guiou o dispositivo para perto da capitã, que cochilava docilmente em uma rede não muito distante dali.
Quando estava focando a câmera do drone sobre Petrescu, uma mão bateu em seu ombro.
– O que você está fazendo, Olsen? – uma voz feminina com forte sotaque francês às suas costas indagou.
Sob um frio enorme na espinha, Bruno olhou para trás. Era a tenente, segunda na hierarquia, Jacqueline Landeau.
Perplexo, o astronauta ficou em choque, mas a tenente parecia se divertir com a situação.
– Relaxa, cadete! – Jacqueline bateu mais algumas vezes no ombro de Bruno – Eu te entendo. Ver uma quarrentona loirraça tón conservada deve ser imprressionante.
Não tanto quanto você.
Jacqueline era muito bonita, com um corpo esguio, cabelos longos e pele cor-de-ébano belíssima. O grupo do qual faziam parte, assim como vários distribuídos por outros planetas potencialmente habitáveis, teriam de "testar" o ambiente para a possível chegada de outros seres humanos. Inclusive "naquilo". E Bruno, de certa forma, já tinha uma favorita.
– O que está esperrando, Olsen? – Jacqueline chamou-lhe a atenção enquanto se sentava na cadeira ao lado – O drrone é parra ver o que há no planeta, non prra voyeurrismo.
O baque fez com que o astronauta voltasse a se focar no trabalho. O drone decolou mais uma vez e partiu rumo à densa floresta.
Kukara
O plano de fuga de Kukara ficava cada vez mais difícil a cada acréscimo de um novo integrante ao grupo de caçada.
– Fique de olho nela para que não fuja – Tanoru, seu pai, alertava cada novo caçador.
E a cada acréscimo de avisos também.
Uma das poucas fêmeas a integrar a caçada, Kukara era tão boa ou até melhor na tarefa que a maioria dos machos do bando, inclusive Kajoru, um pouco mais velho que ela e que se achava o tal por ser paparicado pelos mais velhos.
– Oi, maninha! – cumprimentou Kajoru enquanto voavam na direção da gigantesca Árvore Mãe, no centro da floresta – Seu pai me pediu para que eu cuidasse pessoalmente de você.
Fala sério... Kajoru era irmão dela por parte de mãe, que, como fêmea dominante, fazia com que Kukara desconhecesse a maioria dos parentes.
– Mas você não é o "grande caçador"? – Kukara provocou.
– Hoje vou deixar os novatos, como você, caçarem um pouco – gabou-se Kajoru – Não podem depender tanto assim de mim.
Para sorte de Kukara, chegaram à Árvore Mãe e seu pai interrompeu todas as conversas paralelas para passar as metas da caçada. Os cerca de vinte caçadores convocados pousaram e ouviram atentamente.
– Quero que peguem pelo menos um bogaki cada. E cada novato deve acompanhar um veterano. E por fim a parte mais importante: não devem, de forma alguma, se aproximar dos vermes brancos e de clareiras.
Esse final foi pronunciado por Tanoru com a vista sobre Kukara. Agora são mais de trinta olhos sobre mim, pensou Kukara, aborrecida.
Como de costume, todos fizeram um círculo e pediram à deusa-sol Kashara e aos seus dois filhos Mawaru e Woloru que tivessem sucesso na empreitada.
Meu irmão não se parece em nada com o deus-filho, pensou Kukara, rindo por dentro como sempre fazia naqueles momentos.
– Agora vão – gritou Tanoru, e todos decolaram velozmente para o céu.
Kukara perdera toda a animação que tinha de caçar ao ser vigiada por Kajoru, até mesmo porque o vigia não parava de falar e se gabar de suas caçadas anteriores. A conversa fiada prosseguiu até que ambos avistaram um bogaki.
– Vou deixar esse com você, Kukara.
Convencido.
Kukara mergulhou para tentar pegá-lo, mas o bogaki lhe driblou, escapando de suas garras inferiores por muito pouco, e se ocultou atrás de uma árvore. Kajoru ria do alto, para aborrecimento de sua meia-irmã. Rodeando a árvore, para seu azar, Kukara não encontrou o bogaki, o que seria uma enorme vergonha para ela, dado o fato de ser branco em contraste com o verde da vegetação.
Eu não vou pedir ajuda. Muito menos pro Kajoru.
No entanto, o inseto desaparecera completamente. Visto que cada um dos caçadores teria de levar um bogaki, Kukara engoliu seu orgulho e voou de volta para o lado de Kajoru. Seu meio-irmão, prevendo, se adiantou.
– Relaxa. Eu avistei outro ali.
Kukara comemorou. Provavelmente atordoado por outro caçador, o bogaki voava de forma estranha. Sem pestanejar, Kukara novamente deu um rasante e agarrou o bogaki sem dificuldades. No entanto, seu tato denunciou que havia algo errado.
Ele está muito pesado!
Kajoru se aproximou e tentou ajudar Kukara. Com dificuldades, ambos nocautearam o bogaki e o derrubaram no chão. Em seguida, se entreolharam, combinando tacitamente, e abocanharam cada um uma das asas.
– Ele está com gosto de merda! – Kajoru, com cara de asco, reclamou.
Óbvio! É porque não é um bogaki.
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Kepler - três sóis, dois povos (amostra)
Science Fiction"Uma enorme ave pousou no meio da clareira sagrada. De dentro dela, vários vermes brancos saíram e começaram a construir seu ninho. A maioria de nós não gostou muito desses novos moradores, mas eu acho que eles podem ser muito intrigantes." (Kukara)...