Capítulo 10

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  Bem diferente esta exaltação deliciosa do abatimento espavorido da véspera,da manhã mesmo, na secretaria da Instrução Pública. A expectativa mortal daschamadas; uma insignificância: o terror acadêmico! que nos sobressalta, que nos deprime como o que há de mais grave. E por ocasião das provas de francês já nãoera estreante.A estréia do primeiro exame foi de fazer febre. Três dias antes pulavam-me aspalpitações; o apetite desapareceu; o sono depois do apetite; na manhã do ato, asnoções mais elementares da matéria com o apetite e com o sono. Memoria in albis.O professor Mânlio animava; a animação, lembrando o perigo, assustavamais. Esmagava-me por antecipação o peso enorme da bastilha da Rua dosOurives, como os tribunais ferozes, sem apelo; a terrível campainha penetrante daabertura da solenidade, os reposteiros plúmbeos de espesso verde, sopesando asarmas imperiais, as formidáveis paredes de alvenaria secular. Que barbaridadeaquela conspiração toda contra mim, contra um, de todos aqueles perfisrebarbativos, contínuos, o Matoso, o Neves Leão, as comissões, qual mais poderosae carrancuda; o Conselho da Instrução no fundo, coisa desconhecida, mitológica,entrevista como as pinturas religiosas das abóbadas sombrias, onde as vozes danave engrossam de ressonância, emprestando a força moral à justiça dascomissões, com o prestigio da elevação e do inacessível; mais alto que tudo, oMinistro do império, o Executivo, o Estado, a Ordem Social, aparato enorme contrauma criança.Entrava-se pela Rua da Assembléia, para o saguão ladrilhado.Ali estive não sei que tempo, como um condenado em oratório. Em redor demim, morriam de palidez outros infelizes, esperando a chamada. Um, o mais velhode todos, cadavérico, ar de Cristo, tinha a barba rente, pretíssima, como um queixode ébano adaptado a uma cara de marfim velho.De repente abre-se uma porta. De dentro, do escuro, saia uma voz, uma listade nomes: um, outro, outro... ainda não era o meu... Afinal! Não houve nem tempopara um desmaio. Empurraram-me; a porta fechou-se; sem consciência dos passos,achei-me numa sala grande, silente, sombria, de teto baixo, de vigas pintadas, quefazia dobrar-se a cabeça instintivamente. Uma parede vidraçada em toda a altura, devidros opacos de fumaça, cor de pergaminho, coava para o interior um crepúsculofatigado, amarelento, que pregava máscaras de icterícia às fisionomias.Entre as vidraças e os lugares que eram destinados aos examinandos, ficavaa mesa examinadora: à direita um velho calvo, baixinho, de alouradas cãs, rodeandoa calva em franja de dragonas, barba da cor dos cabelos, reclinava-se ao espaldarda poltrona e lia um pequeno volume com o esforço dos míopes, esfregando aspáginas ao rosto. A esquerda, um homem de trinta anos, barba rareada por toda aface, pálpebras inclusive, óculos escuros, cabelo seco, caracolando. A claridade,batendo pelas costas, denegria-lhe confusamente as feições. O terceiro, presidenteda comissão, não se via bem, encoberto pela urna verde de frisos amarelos.Distribuiu-se o papel rubricado. Um dos examinadores levantou-se, apanhoucom um movimento circular um punhado de pontos e lançou-os à urna. A urna defolha cantava irônica sob o cair dos números, sonoramente.Tirou-se o ponto; momento de angústia ainda .Depois: estrofe dos Lusíadas! Estávamos livres da expectativa. Não mepreocupou mais a dificuldade do ponto.Depois do ditado, como em relaxamento de cansaço do espírito, esqueci oinventário natural dos conhecimentos que a prova reclamava. Pus-me a pensar nasprimeiras leituras de Camões, no Sanches, nos banhos da natação, na maneira derir de Ângela, no criado assassinado, no processo do assassino, que fora julgadohavia pouco... Três pancadinhas que senti no calcanhar, chamaram-me dasdistrações. 

Voltei-me: era o meu vizinho da mesa de trás, o queixo de ébano que pediasocorro. "Valha-me que estou perdido, não atino com a ordem direta!"O ruído desta frase balbuciada, sibilou bem forte para atrair a atenção damesa. Atirei-lhe a oração principal, mas tive medo de acudir inteiramente. Alémdisso, precisava cuidar do próprio interesse. Deixei o pobre Cristo de marfimentregue ao desespero de uma lauda deserta. De vez em quando, o infelizespetava-me as costas com a caneta.Para a prova oral fui mais animado. A nota da escrita era tranqüilizadora.Os exames orais eram todos nas salas de cima. Entrava-se pela Rua dosOurives. Os examinandos estavam em geral mais calmos. Além destes, enchia-se osaguão da escada com a turbamulta dos assistentes, confusão de fardetas, fraquessurrados, sobrecasacas, todas as idades, todos os colégios representados, além dosestudantes avulsos de aulas particulares, em cujo número confundiam-se carassuspeitas de farroupilhas, exemplares definidos de vagabundagem.O Ateneu era invejado. Vitimas do uniforme, os discípulos de Aristarcopasseavam entre os grupos dos colégios rivais, sofrendo dichotes, com umapaciência recomendada de boa educação.Fumava-se. No ambiente sem luz pairava fixo o nevoeiro dos hálitos e umcheiro de sarro intolerável; emplastravam-se de cusparadas as paredes;passeava-se arrastando os pés na areia do ladrilho; ressoavam grandesgargalhadas de ship-chandler; chasqueava-se a palavrões. Alguns rapazes desorrisos frouxos, sem expressão, maneiras reles, arrebitavam para o alto, com ascostas da mão, chapéus de palha suja, e passeavam gingando. Os mais distintosdevam caminho, repuxando um canto desdenhoso de lábios, perfilando mais aelegância.Um rebuliço extraordinário agitou a multidão. Acabava-se de descobrir na cal,coberta de epigramas e rabiscos, uma nova inscrição de muito espírito: versalhadasatírica contra o Professor Courroux, da mesa de francês, rimando em u, sempre emu, de cima a baixo, com uma fertilidade pasmosa de epítetos.Nem de propósito! na mesma ocasião entrava e lançava-se precipitadamentepela escada o terrível professor. "Não o conhece? Lá vai!" indicou-me umcompanheiro mais próximo.— Não o conhecia...Vi-o, magro, anguloso, feio, olhando com ferocidade continua, não se sabiafelizmente para quem, porque era estrábico. Por ele começou o meu improvisadoinformante, e conhecendo que eu andava atrasado a respeito, não me deixou mais:"Se tem empenho, fura; se não tem, babau. Bancas de peixe! O peixe é caro àsvezes, mas é sempre peixe de mercado. Olhe o Meireles da filosofia, aquelecompridão de barba russa; o empenho é a Ritinha Pernambucana da Rua dosArcos; o Simas da mesa de geografia, um pançudo apelidado esfera terrestre,mimoseiem-no com um par de galos de briga... o Barros Andrade... comprem-lhe ospontos..., aquele diabo da retórica que me bombeou há dias... falem-lhe nos versos,que não há suíças mais amáveis. O seu diretor é que os compreende. Quando entraaqui é uma onça; o próprio teto branco empalidece; levantam-se, saúdam osoberano! Agora, há homens respeitáveis: o velho Moreira, o simpático Ramiro, desorriso patriarcal..." 

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