Capitulo 4

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Período sereno da minha vida moral, capitulo a escrever sobre uma banqueta de altar, ou com o alfabeto azul que delineia o fumo do incenso no ar tranqüilo, inolvidáveis tréguas de íntimo sossego em toda a minha juventude, eis em que se tornou a minha amarga descida ao fundo descrédito escolar.
A astronomia, como os céus do salmo, levou-me à contemplação. O mal na terra, descrito pelo Sanches com uma perícia de conhecedor e praticante, tomou vulto no seio das minhas cogitações. A incredulidade primeira acabou em meu espírito, reconhecendo o descalabro deste val de lágrimas em que vivemos. Ao tempo que devia consagrar à minha reabilitação nos estudos, pus-me a estudar, como Inácio de Loiola, talvez na mesma idade, a reabilitação do mundo.
Encarnei o pecado na figura de Sanches e carreguei. Nutria talvez no intimo o ambicioso interesse de um dia reformar os homens com o meu exemplo pontifical de virtudes no sólio de Roma; mas a verdade é que me dediquei conscienciosamente ao santo empenho de merecer essa exaltação, preparando-me com tempo. Perdido o ideal cenográfico de trabalho e fraternidade, que eu quisera que fosse a escola, tinha que soltar para outras bandas os pombos da imaginação. Viveiro seguro era o céu. Ficava-me a vendagem da eterna felicidade, que se não contava.
Acresce que predispunha ao enlevo a tristeza opressa de discípulo mau em que eu jazia. E como aos pequenos esforços que tentava para me reerguer ninguém dava atenção, deixei-me ficar insensível, resignado, como em desmaio sob um desmoronamento. Tinha a consciência em paz, a consciência que é o espetáculo de Deus. Servia-me a crença como um colchão brando de malandrice consoladora. Note-se de passagem que apesar dos anseios de bem-aventurança, eu ia mal no catecismo como no resto.
A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça do arbítrio, não era ainda a cafua, asilo das trevas e do soluço, sanção das culpas enormes. Era o Livro das notas.
Todas as manhãs, infalivelmente, perante o colégio em peso, congregado para o primeiro almoço, às oito horas, o diretor aparecia a uma porta, com a solenidade tarda das aparições, e abria o memorial das partes.
Um livro de lembranças comprido e grosso, capa de couro, rótulo vermelho na capa, ângulos do mesmo sangue. Na véspera cada professor, na ordem do horário, deixava ali a observação relativa à diligência dos seus discípulos. Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras das caixas encantadas dos contos de maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha-se a opinião do Ateneu. Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião sem corretivo como os tribunais supremos. O temível noticiário, redigido ao saber da justiça suspeita de professores,muita vez despedidos por violentos, ignorantes, odiosos, imorais, erigia-se em censura irremissível de reputações. O julgador podia ser posto fora por uma evidenciação concludente dos seus defeitos; a difamação estampada era irrevogável.E pior é que lavrava o contágio da convicção e surpreendia-se cada um consecutivamente de não haver reparado que era mesmo tão ordinário tal discípulo,tal colega, reforçando-se passivamente o conceito, até consumar-se a obra de vilipêndio quando, por último, o condenado, sem mais uma sugestão de revolta,achava aquilo justo e baixava a cabeça. A opinião é um adversário infernal que conta com a cumplicidade, enfim, da própria vitima.Com exceção dos privilegiados, os vigilantes, os amigos do peito, os que dormiam à sombra de uma reputação habilmente arranjada por um justo conchavo de trabalho e cativante doçura, havia para todos uma expectativa de terror antes da leitura das notas. O livro era um mistério.À medida que se desenrolava a gazetilha, as ânsias iam serenando. Os vitimados fugiam, acabrunhados de vergonha, oprimidos sob o castigo incalculável de trezentas carinhas de ironia superior ou compaixão de ultraje. Passavam junto de Aristarco ao sair para a tarefa penal de escrita. O diretor, arrepiando uma das cóleras olímpicas que de um momento para outro sabia fabricar, descarregava como livro às costas do condenado, agravante de injúria e escárnio à pena de difamação. O desgraçado sumia-se no corredor, cambaleando.Quando a coisa não dava para cóleras, Aristarco limitava-se a sublinhar com uma ponderação qualquer a sentença catedrática; ora uma exclamativa de espanto,ora uma ameaça, ora um insulto vivo e breve, ora um conselho amortalhado em fúnebre dó.Às vezes enlaçava com dois dedos o menino pela nuca e o voltava, fremente e submisso, para o colégio atento, oferecendo-o às bofetadas da opinião: "Veja mesta cara!..."A criança, lívida, fechava os olhos.Em compensação, não havia expressa mente punições corporais.O Professor Mânlio, sempre considerando a recomendação, polpou-me longamente ao castigo formidável das partes. Perdeu por fim a paciência e fulminoume. No dia seguinte ao almoço, amargava eu, sem açúcar que me bastasse, o resto do café quinado da expectativa (porque Mânlio tinha-me prevenido), quando ouvi Aristarco, alargando pausas dramáticas de comoção, ler, claro, severo: "O Sr.Sérgio tem degenerado..."Eu havia figurado já na gazetilha do Ateneu com algumas notas de louvor;guardou-se a sensação para a nota má. O diretor olhou-me sombrio.No fundo do silêncio comum do refeitório, cavou-se um silêncio mais fundo, como um poço depois de um abismo. Senti-me devorado por este silêncio hiante. A congregação justiceira dos colegas voltou-se para mim, contra mim. Os vizinhos de lagar à mesa afastaram-se dos dois lados, para que eu melhor fosse visto. De longe,da copa, chegava um ruído argentino, horrível, de colheres à lavagem; no parque ciciavam ao vento.Aristarco foi clemente. Era a primeira vez, perdoou.

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