Capítulo 12

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  Música estranha, na hora cálida. Devia ser Gottschalk. Aquele esforçoagonizante dos sons, lentos, pungidos, angústia deliciosa de extremo gozo em quepode ficar a vida porque fora uma conclusão triunfal. Notas graves, uma, uma;pausas de silêncio e treva em que o instrumento sucumbe e logo um dia claro derenascença, que ilumina o mundo como o momento fantástico do relâmpago, que aescuridão novamente abate...Há reminiscências sonoras que ficam perpetuas, como um eco do passado.Recorda-me, às vezes, o piano, ressurge-me aquela data. 

Do fundo repouso caído de convalescente, serenidade extenuada em que nosdeixa a febre, infantilizados no enfraquecimento como a recomeçar a vida, inermescontra a sensação por um requinte mórbido da sensibilidade — eu aspirava a músicacomo a embriaguez dulcíssima de um perfume funesto; a música envolvia-me numcontágio de vibração, como se houvesse nervos no ar. As notas distantescresciam-me n'alma em ressonância enorme de cisterna; eu sofria, como daspalpitações fortes do coração quando o sentimento exacerba-se — a sensualidadedissolvente dos sons.Lasso, sobre os lençóis, em conforto ideal de túmulo, que a vontade morrera,eu deixava martirizar-me o encanto. A imaginação de asas crescidas, fugia solta.E reconhecia visões antigas, no teto da enfermaria, no papel das paredesrosa desmaiado, cor própria, enferma e palejante... Aquele rosto branco, cabelos deondina, abertos ao meio, desatados, negríssimos, desatados para os ombros, aadorada dos sete anos que me tivera uma estrofe, paródia de um almanaque, valhaa verdade, e que lhe fora entregue, sangrento escárnio! pelo próprio noivo; outraigualmente clara, a pequenina, a morta, que eu prezara tanto, cuja existência fora nomundo como o revoar das roupas que os sonhos levam, como a frase fugitiva de umhino de anjos que o azul embebe... Outras lembranças confusas, precipitadas,mutações macias, incansáveis de nuvens, enlevando com a tonteira da elevação;lisas escapadas por um plano oblíquo de vôo, oscilação de prodigioso aeróstato,serena, em plena atmosfera...Panoramas completos, uma partida, abraços, lágrimas, o steamer preto, sobrea água esmeralda, inquieta e sem fundo, a gradezinha de cordas brancas cercandoa popa, os salva-vidas como grandes colares achatados, cabos que se perdiam paracima, correntes que se dissolviam na espessura vítrea do mar; a câmara dourada,baixa, sufocante, o torvelinho dos que se acomodam para ficar, dos que seapressam para descer aos escaleres...Uma janela. Embaixo, o coradouro, espaçoso; para diante mangueirasarredondando a copa sombria na tela nítida do céu; além das mangueiras,conglobações de cúmulos crescendo a olhos vistos, floresta colossal de prata; deoutro lado, montanhas arborizadas, expondo num ponto e noutro, saliênciaspeitorais de ferrugem como armaduras velhas. No coradouro estendidas, peças deroupa, iriadas de sabão, meias compridas de ourela vermelha, desenroladas narelva, saudosas da perna ausente, grandes lençóis, vestidos rugosos de molhados;acima do coradouro, cordas, às cordas camisas transparentes, decotadas, rendadas,sem manga, lacrimejando espaçadamente a lavagem como se suassem ao sol atranspiração de muitas fadigas; saias brancas que dançavam na brisa a lembrançacoreográfica da soirée mais recente.Quando o vento era mais forte, enfunava as roupas estendidas, inflandoventres de mulher nas saias, nas camisas. Ângela aparecia. Sempre no seu raio desol, como as fadas no raio de lua. Saudava-me à janela com uma das exclamaçõesvivas de menino surpreso. Sem paletó, às mãos, empilhados, dois montes de roupaenxaguada. Ajudava a lavadeira para distrair-se. Falava olhando para cima,afrontando o dia sem cobrir os olhos.Estava aborrecida, uma preguiça! uma preguiça! uma vontade de deitar nocolo! começava as infinitas histórias, narradas devagar, como derretidas no lábioquente, muito repisadas, de quando era pequena, aventuras da imigração, as casasonde trabalhara; contava as origens do drama do outro ano... tratara de acomodaros dois para ver se as coisas chegavam a bom termo; a desgraça não quis. Agora,para falar a verdade, gostava mais do que morreu. O assassino era muito mau,exigia coisas dela como se fosse uma escrava; era bruto, bruto. Mas era deEspanha, companheiros de viagem, e um homem bonito! sacudido, eu bem tinhaconhecido; mas judiava dela; batia, empurrava: olhe, ainda tinha sinais, e levantavacandidamente o vestido para mostrar, no joelho, na coxa, cicatrizes, manchasantigas que eu não via absolutamente, nem ela.Cessava a música...As venezianas abertas davam entrada à claridade do tempo. Entravasimultaneamente um burburinho imperceptível de árvores, falando longe, gorjeiosciciados de pássaros, gritos humanos indistintamente, atenuados pela imensadistancia, marteladas miúdas de canteiro, tremor de carros nas ruas, miniaturaextrema de trovão, parcelas ínfimas da vida pulverizadas na luz...A porta da enfermaria descerrava-se devagarinho e na matinée de musselinaelegante e frouxa aparecia a amável senhora. Vinha verificar se eu dormia, sabercomo passava agora.Bastava a sua presença para reanimar-me no leito. Tão boa, tão boa no seucarinho de enfermeira, de mãe.Junto da cama, um velador modesto e uma cadeira. Ema sentava-se.Pousava os cotovelos à beira do colchão, o olhar nos meus olhos — aquele olharinolvidável, negro, profundo como um abismo, bordado pelas seduções todas davertigem. Eu não podia resistir, fechava as pálpebras; sentia ainda na pálpebra como hálito de velado a carícia daquela atenção.Ao fim de algum tempo, a senhora, a ver se eu tinha febre, demorava-me apequenina mão sobre a testa, finíssima, fresca, deliciosa como um diadema defelicidade.Eu me perdia numa sonolência sem nome que jamais lograram produzir osmais suaves vapores do narcotismo oriental.Com o regime fortificante desta terapêutica, voltava-me rapidamente a saúde.Logo depois da festa de educação física, que foi alguns dias depois da grandesolenidade dos prêmios, eu adoecera. Sarampos, sem mais nem menos. Por motivodos seus padecimentos, meu pai seguira para a Europa, levando a família. Eu ficarano Ateneu, confiado ao diretor, como a um correspondente.Meia dúzia de rapazes eram meus companheiros. Que terrível soledade oAteneu deserto. No pátio, o silêncio dormia ao sol, como um lagarto. Vagávamos,bocejando pelas salas desmontadas, despidas; as carteiras amontoadas num canto,na caliça os pregos somente das cartas com alguns quadros restantes de máximas,por maior insipidez, os mais teimosos conselhos morais. Nos dormitórios, as camasdesfeitas mostravam o esqueleto de ferro pintado, o xadrez das chapas cruzadas.Principiava um serviço vasto de lavagem, envernizagem, caiação; vieram pintoresreformar os aspectos do edifício que se renovavam todos os anos.Os tristes reclusos das férias, ficávamos, no meio daquela restauração geral,como coisas antigas, do outro ano, com o deplorável inconveniente de se não podercaiar de novo e pintar.Nesta situação, como do excesso de brilho das paredes em sol, que debatiamfulgores na melancolia morna de circunvizinhança dos morros, começaram adoer-me os olhos até à lágrima, forrou-me a língua um sabor desagradável decastanhas cruas. Seria isso o gosto do aborrecimento? Pesava-me a cabeça, ocorpo todo, como se eu me cobrisse de chumbo.Assim passei alguns dias, sem me queixar. Certa manhã, descubro no corpoum formigueiro de pintinhas rubras. Aristarco fez-me recolher na enfermaria, umprolongamento de sua residência para os lados da natação. Veio o médico, omesmo do Franco; não me matou. D. Ema foi para mim o verdadeiro socorro. Sabiatanto zelar, animar, acariciar, que a própria agonia aos cuidados do seu trato forauma ressurreição.A enfermaria era um simples lance da casa, espécie de pavilhão lateral, comentrada independente pela chácara e comunicando por dentro com as outras peças.A senhora não deixava a enfermaria. Vigiava-me o sono, as crises de delírio,como uma irmã de caridade.Aristarco surgia às vezes solenemente, sem demorar. Ângela nunca. Fora-lheproibida a entradaJunto da cama, D. Ema comovia-se, mirando a prostração pálida, ao reabriros olhos de um desses períodos de sono dos enfermos, que tão bem fingem demorte. Tirava-me a mão, prendia nas dela tempo esquecido; luzia-lhe no olhar umbrilho de pranto. A alimentação da dieta era ela quem trazia, quem servia. Às vezespor gracejo carinhoso queria levar-me ela mesma o alimento à boca, a colherinha desagu, que primeiro provava com um adorável amuo de beijo. Se precisava andar noaposento para mudar um frasco, entreabrir a janela, caminhava como uma sombrapor um chão de paina.Eu me sentia pequeno deliciosamente naquele circulo de conchego como emum ninho.Quando entrei em convalescença, a graciosa enfermeira tornou-se alegre. Àsescondidas do médico, embriagava-me, com aquela medicina de risos, gargarejoinimitável de pérolas a todo pretexto. Tagarelava, agitava-se como um pássaropreso. Cantava, às vezes, para adormecer-me, músicas desconhecidas, tãofinamente, tão sutilmente, que os sons morriam-lhe quase nos lábios, brandos comoo adejo brando da borboleta que expira. Quando me julgava adormecido,arranjava-me ao ombro a colcha, alisando-a sobre o corpo; uma vez beijou-me natêmpora. E retirava-se, insensivelmente, evaporava-se.Por um acaso da distribuição acústica dos compartimentos da casa, ouvia-sebem, agradavelmente amaciado, o som do piano do salão. A amável senhora, paramandar-me da sua ausência alguma coisa ainda, que acariciasse, que me fosseagradável, traduzia no teclado com a mesma brandura sentida as musicas que sabiacantar. Nenhuma violência de execução. Sentimento, apenas, sentimento, sucessãomelódica de sons profundos, destacados como o dobre, em novembro, dos bronzes;depois, uma enfiada brilhante de lágrimas, colhidas num lago de repouso, final,sereno, consolado... efeitos comoventes da música de Schopenhaeur; forma semmatéria, turba de espíritos aéreos.A primeira vez que me levantei, trêmulo da fraqueza, Ema amparou-me até àjanela. Dez horas. Havia ainda a frescura matinal na terra. Diante de nós o jardimvirente, constelado de margaridas; depois, um muro de hera, bambus à direita; umazona do capinzal fronteiro; depois, casas, torres, mais casas adiante, telhados aindaa distancia, a cidade. Tudo me parecia desconhecido, renovado. Curioso esplendorrevestia aquele espetáculo. Era a primeira vez que me encantavam assim aquelasgradações de verde, o verde-negro, de faiança, luzente da hera, o verde flutuantemais claro dos bambus, o verde claríssimo do campo ao longe sobre o muro, emtodo o fulgor da manhã. Tetos de casas, que novidade! que novidade o perfil de umachaminé riscando o espaço! Ema entregava-se, como eu, ao prazer dos olhos.Sustinha-me em leve enlace; tocava-me com o quadril em descanso.Absorvendo-me na contemplação da manhã, penetrado de ternura, inclinei acabeça para o ombro de Ema, como um filho, entrecerrando os cílios, vendo ocampo, os tetos vermelhos como coisas sonhadas em afastamento infinito, atravésde um tecido vibrante de luz e ouro.Desde essa ocasião, fez-se-me desesperada necessidade a companhia daboa senhora. Não! eu não amara nunca assim a minha mãe. Ela andava agora emviagem por países remotos, como se não vivesse mais para mim. Eu não sentia afalta. Não pensava nela... Escureceu-me as recordações aquele olhar negro, belo,poderoso, como se perdem as linhas, as formas, os perfis, as tintas, de noite, noaniquilamento uniforme da sombra... Bem pouco, um resto desfeito de saudadespara aquela inércia intensa, avassalando.Apavorava-me apenas um susto, alarma eterno dos felizes, azedumeinsanável dos melhores dias: não fosse subitamente destruir-se a situação. Aconvalescença progredia; era um desgosto.No pequeno aposento da enfermaria, encerrava-se o mundo para mim. Omeu passado eram as lembranças do dia anterior, um especial afago de Ema, umaatitude sedutora que se me firmava na memória como um painel presente, as duascovinhas que eu beijava, que ela deixava dos cotovelos no colchão premido, aopartir, depois da última visita à noite, em que ficava como a esperar que eudormisse, apoiando o rosto nas mãos, os braços na cama, impondo-me a letargiamagnética do vasto olhar.O meu futuro era o despertar precoce, a ansiada esperança da primeira visita.Saltava da cama, abria imprudentemente a vidraça, a veneziana. Ainda escuro. Umaluz em frente, longínqua, irradiava solitária, reforçando pelo contraste a obscuridade.Por toda a parte firmamento limpo. O mais completo silêncio. Dir-se-ia ouvir nosilêncio azul das alturas a crepitação das estrelas ardendo.Eu tornava ao leito. Esperava. Não dormia mais. Ao fim de muito tempo,entrava na enfermaria, vinha ter aos lençóis, de mansinho, como uma insinuaçãoderramada de leite, a primeira manifestação da alvorada. O arvoredo movia-se foracom um bulício progressivo de folhagem que acorda. A luz meiga, receosa,desenvolvia-se docemente pelo soalho, pelas paredes.Havia no aposento um grande cromo de paisagem, montanhas de neve nofundo, mais à vista, uma vivenda desmantelada, uma cachoeira de anil e pinheirosespectrais, trabalhados, encanecidos por um século de tormentas. A madrugadasubia ao quadro, como se amanhecesse também na região dos pinheiros. Euesperando. A madrugada progredia.Toucava-se a vegetação de cores diurnas. Dialogava o primeiro trilar dapassarada. Eu esperando ainda. E ela vinha... com a aurora.Trouxe-me uma vez uma carta, de Paris, de meu pai."... Salvar o momento presente. A regra moral é a mesma da atividade Nadapara amanhã, do que pode ser hoje; salvar o presente Nada mais preocupe. O futuroé corruptor, o passado é dissolvente, só a atualidade é forte. Saudade, umacovardia, apreensão outra covardia. O dia de amanhã transige; o passado entristecee a tristeza afrouxa.Saudade, apreensão, esperança, vãos fantasmas, projeções inanes demiragem; vive apenas o instante atual e transitório. É salvá-lo! salvar o náufrago dotempo.Quanto a linha de conduta: para diante. É a honesta lógica das ações.Para diante, na linha do dever, é o mesmo que para cima. Em geral, adespesa de heroísmo é nenhuma. Pensa nisto. Para que a mentira prevaleça, émister um sistema completo de mentiras harmônicas. Não mentir é simples. 

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