Capítulo 9

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  A anistia dos revolucionários aproveitou por extensão aos execrandos réus damoralidade. Já frouxa a fibra dos rigores, Aristarco despediu-os do gabinete com apenitência de algumas dezenas de páginas de escrita e reclusão por três dias numasala. Desprestigiava-se a Lei, salvavam-se, porém, muitas coisas, entre as quais ocrédito do estabelecimento, que nada tinha a lucrar com o escândalo de um grandenúmero de expulsões. Quanto ao encerramento dos culpados na trevosa cafua,impossível, que lá estava o Franco, por exigência expressa do Silvino, comocausador primeiro das inqualificáveis perturbações da ordem no Ateneu.Esta resolução agradou-me sumamente. Pena seria, em verdade, queperdesse eu, logo depois do Bento Alves, tão desastradamente concluído na históriasentimental das minhas relações, o meu amigo Egbert.Adquirira-o com a transição para as aulas secundárias, onde o encontrei comoutros adiantados. Vizinhos de banco, compreendemo-nos, mutuamente simpáticos,como se um propósito secreto de coisa necessária tivesse guiado o acaso dacolocação.Conheci pela primeira vez a amizade. A insignificância cotidiana da vidaescolar em que a gente se aborrece é favorável ao desenvolvimento de inclinaçõesmais sérias que as de simples conveniência menineira. O aborrecimento é um feitioda ociosidade, e da mãe proverbial dos vícios gera-se também o vicio de sentir.A convivência do Sanches fora apenas como o aperfeiçoamento aglutinantede um sinapismo, intolerável e colado, espécie de escravidão preguiçosa dainexperiência e do temor; a amizade de Bento Alves fora verdadeira, mas do meulado havia apenas gratidão, preito à força, comodidade da sujeição voluntária,vaidade feminina de dominar pela fraqueza, todos os elementos de uma formapassiva de afeto, em que o dispêndio de energia é nulo, e o sentimento vive dedescanso e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões, que a simpatia não seargumenta. Fazíamos os temas de colaboração; permutávamos significados,ninguém ficava a dever. Entretanto, eu experimentava a necessidade deleitosa dadedicação. Achava-me forte para querer bem e mostrar. Queimava-me o ardorinexplicável do desinteresse. Egbert merecia-me ternuras de irmão mais velho.Tinha o rosto irregular, parecia-me formoso. De origem inglesa, tinha oscabelos castanhos entremeados de louro, uma alteração exótica na pronúncia, olhosazuis de estrias cinzentas, oblíquos, pálpebras negligentes, quase a fechar, que serasgavam, entretanto, a momentos de conversa, em desenho gracioso e largo.Vizinhos ao dormitório, eu, deitado, esperava que ele dormisse para vê-lodormir e acordava mais cedo para vê-lo acordar. Tudo que nos pertencia, eracomum. Eu por mim positivamente adorava-o e o julgava perfeito. Era elegante,destro, trabalhador, generoso. Eu admirava-o, desde o coração, até a cor da pele eà correção das formas. Nadava como as toninhas. A água azul fugia-lhe diante emmarulho, ou subia-lhe aos ombros banhando de um lustre de marfim polido abrancura do corpo. Dizia as lições com calma, dificilmente às vezes, embaraçado poraspirações ansiosas de asfixia. Eu mais o prezava nos acessos doentios daangustia. Sonhava que ele tinha morrido, que deixara bruscamente o Ateneu; osonho despertava-me em susto, e eu, com alívio, avistava-o tranqüilo, na camapróxima, uma das mãos sob a face, compassando a respiração ciciante. No recreio,éramos inseparáveis, complementares como duas condições recíprocas deexistência. Eu lamentava que uma ocorrência terrível não viesse de qualquer modoameaçar o amigo, para fazer valer a coragem do sacrifício, trocar-me por ele no perigo, perder-me por uma pessoa de quem nada absolutamente desejava.Vinham-me reminiscências dos exemplos históricos de amizade; a comparaçãopagava bem.No campo dos exercícios, à tarde, passeávamos juntos, voltas sem fim, empalestra sem assunto, por frases soltas, estações de borboleta sobre as doçuras deum bem-estar mútuo, inexprimível. Falávamos baixo, bondosamente, como temendoespantar com a entonação mais alta, mais áspera, o favor de um gênio benigno queestendia sobre nós a amplidão invisível das asas. Amor unus erat.Entrávamos pelo gramal. Como ia longe o burburinho de alegria vulgar doscompanheiros! Nós dois sós! Sentávamo-nos à relva. Eu descansando a cabeça aosjoelhos dele, ou ele aos meus. Calados, arrancávamos espiguilhas à grama. O pradoera imenso, os extremos escapavam já na primeira solução de crepúsculo.Olhávamos para cima, para o céu. Que céus de transparência e de luz! Ao alto, aoalto, demorava-se ainda, em cauda de ouro, uma lembrança de sol. A cúpula fundadescortinava-se para as montanhas, diluição vasta, tenuíssima de arco-íris. Brandosreflexos de chama; depois, o belo azul de pano, depois a degeneração dos matizespara a melancolia noturna, prenunciada pela última zona de roxo doloroso. Quemnos dera ser aquelas aves, duas, que avistávamos na altura, amigas, declinando ovôo para o ocaso, destino feliz da luz, em pleno dia ainda, quando na terra iam portudo as sombras!Outras vezes, subíamos ao duplo trapézio. Embalávamo-nos primeiro brando,afrontando a carícia rápida do ar. Pouco a pouco aumentava o balanço earriscávamos loucuras de arremesso, assustando o Ateneu, levados em vertigem,distendidos os braços, pés para frente, cabeça para baixo, cabelos desfeitos, ébriosde perigos, ditosos se as cordas rompessem e acabássemos os dois, ali, como umasó vida, no mesmo arranco.Líamos muito em companhia. Páginas que não terminavam, de leiturasdelicadas, fecundas em cisma: Robinson Crusoé, a solidão e a indústria humana;Paulo e Virgínia, a solidão e o sentimento. Construíamos risonhas hipóteses: quefaria um de nós, vendo-se nos aparos de uma ilha deserta?— Eu, por mim, iniciava logo uma furiosa propaganda a favor da imigração eia clamar às praias, até que me ouvisse o mundo.— Eu faria coisa melhor: decretava preventivamente o casamento obrigatórioe punha-me a esperar pelo tempo.A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi principalmente o nosso enlevo.Parecia-nos ter o poema no coração. A baia do Túmulo, de águas profundas esombrias, festejada apenas algumas horas pelo sol a prumo, em suave tristezasempre; ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista, branca, da igreja rústica dePamplemousses.Ideávamos vagamente, mas inteiramente, na meditação sem palavras dosentimento, quadro de manchas sem contorno, ideávamos bem as cenas que líamosda singela narrativa, almas que se encontram, dois coqueiros esbeltos crescendojuntos, erguendo aos poucos o feixe de grandes folhas franjadas, ao calor dafelicidade e do trópico. Compreendíamos os pequeninos amantes de um ano,confundidos no berço, no sono, na inocência.Revivíamos o idílio todo, instintivo e puro. "Virginie, elle sera heureuse!..."Animávamo-nos da animação daquelas correrias de crianças na liberdade agreste,gozávamos o sentido daquela topografia de denominações originais — Descobertasda Amizade, Lágrimas Enxugadas, ou de alusões à pátria distante. Ouvíamospalmear a revoada dos pássaros, disputando, ao redor de Virgínia, a ração demigalhas. Percebíamos sem raciocínios a filosofia sensual da mimosa entrevista."Est-ce par ton esprit? Mais nos mères en ont plus que nous deux. Est-ce partes caresses? Mais elles m'embrassent plus souvent que toi... Je crois que c'est parta bonté... Mais, auparavant, repose-toi sur mon sein et je serai délassé. — Tu medemandes pourquoi tu m'aimes. Mais tout ce qui a été élevé ensemble s'aime. Voisnos oiseaux élevés dans les mêmes nids, ils s'aiment comme nous; ils sont toujoursensemble comme nous. Écoute comme ils s'appellent et se répondent d'un arbre àl'autre..."Confrangia-nos, enfim, ao voltar das páginas, a dificuldade cruel das objeçõesde fortuna e de classe, o divórcio das almas irmãs, quando os coqueiros ficavamjuntos. E a iminência constritora do austro, da catástrofe, a lua cruenta de presságiossobre um céu de ferro...E guardávamos do livro, cântico luminoso de amor sobre a surdina escura dosdesesperos da escravidão colonial, uma lembrança, misto de pesar, de encanto, deadmiração. Que tanto pôde o poeta: sobre o solo maldito, onde o café floria e oníveo algodão e o verde claro dos milhos de uma rega de sangue, altear a imagemfantástica da bondade. Virgínia coroada; como o capricho onipotente do sol,formando em glória os filetes vaporosos que os muladares fumam, que um raiochama acima e doura.Com o Egbert experimentei-me às escondidas no verso. Esboçamos emcolaboração um romance, episódios medievais, excessivamente trágicos, cheios deluar, cercados de ogivas, em que o mais notável era um combate devidamenteorganizado, com fuzilaria e canhões, antecipando-se de tal maneira a invenção deSchwartz, que ficávamos para todo o sempre, em literatura, a salvo da increpaçãode não descobrir a pólvora.Quando ouvi-lhe o nome, à chamada dos comprometidos no processo, sofricomo a surpresa de um golpe. Desesperou-me não achar o meio de compartir comele a vergonha.Qual a espécie de cumplicidade que se atribuía? Não quis saber; fosse o maistorpe dos réus, era o meu amigo: tudo que sofresse, muito culpado embora, era, nomeu conceito, uma provação da fatalidade. E fazia-me estremecer a idéia de queiam maltratar criatura tão mansa, tão complacente, tão amável, feita de sensibilidadee brandura, contra quem o mal seria sempre uma injustiça, que eu prezaria comtodos os defeitos, com todas as máculas, na facilidade de perdão das cegueirassentimentais, estranhezas da preferência, que envolve tudo, no ser querido, a fraselímpida do olhar ou o cheiro acre, mesmo impuro, da carne.Quando nos tornamos a ver, nenhum teve para o outro a mínima palavra;ficamos a um banco, lado a lado, em expansivo silêncio. E nunca, depois, nem poralusão distante, nos referimos ao caso. Coincidência instintiva de um respeitorecíproco, ódio talvez comum de uma recordação ominosa.Desde o mês de julho do ano anterior, cursava os estudos elementares daslínguas, alegrando-me a aquisição do vocábulo estrangeiro, comércio com alinguagem dos grandes povos, como se provasse a goles a civilização, como sebebesse a realidade do movimento humano nos países remotos que os cosmoramaspintam, em que vagamente acreditávamos como se acredita em romances.Seguiu-se a maçada dos intermináveis temas.Nas aulas superiores, a facilidade adquirida amenizava o trabalho. As páginassorriam de literatura, com o sorriso conhecido dos objetos familiares. 

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