Capítulo 11

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  O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções aos sábados, à imitação dasque fazia às quintas Aristarco sobre lugares-comuns de moralidade. Filosofia,ciência, literatura, economia política, pedagogia, biografia, até mesmo política ehigiene, tudo era assunto; interessantíssimas, sem pesadas minuciosidades. Depoisda astronomia do diretor, nenhuma curiosidade me valera tão bons minutos deatenção.Narrava-nos a vida. As festas plutonianas do movimento, da ignição; agênese das rochas, fecundidade infernal do incêndio primitivo, do granito, do pórfiro,primogênitos do fogo; o grande sono milenário dos sedimentos, perturbado deconvulsões titânicas.Falava do antracito e da hulha, o luto feito pedra, lembrança trágica de muitaseras orgulhosas do planeta, monumento da pré-história das árvores, negro, que a indústria dos homens devasta. Descrevia a escadaria dos terrenos, onde existe apegada impressa do gênio das metamorfoses, subindo, desde a vegetação florestaldos fetos até ao homem quaternário. Falava-nos de Cuvier e da procissão dosmonstros ressurgidos, caminho dos museus, o megatério potente, tardo, balançandoas passadas, sujo, descamando saibro e as concreções secas do lobo diluviano,solene, cônscio da carga de séculos que transporta.Vinha depois a aluvião moderna das zonas formadas, o solo fecundo,lavradio. E o mestre passava a descrever a vida na umidade, na semente, aevolução da floresta, o gozo universal da clorofila na luz. Falava-nos do cerne, ogeneroso madeiro, o tronco, que sangra em Dante, que sustenta nos mares ocomércio, Netuno inglês do tridente de ouro. Falava-nos da poesia ignorada davegetação marinha nos abismos, e da giesta, isolada nas altas neves, flor do ermo, adegradada eterna do inacessível.Depois, a história dos brutos, os grandes bramidos de macho nas regiõesvirgens, os dramas do egoísmo na selva, do egoísmo rude da força que pode, cego,formidável, sagrado como a fatalidade. E corria inteira a série das classificações,mostrando a vida no infinitésimo, a microbia invisível, onipotência do número,sociedade inconsciente da mônada, solidária para a morte e para as reconstruçõesimperecíveis da Terra.O homem finalmente — ventre, coração e cérebro, política, poemas, critério; aalma, universo de universo, imagem de Deus, refletor imenso, antropocêntrico, dodia, das cores, que o Sol inflama, que o Sol não sente.Falava uma vez sobre educação.Discutiu a questão do internato. Divergia do parecer vulgar, que o condena.É uma organização imperfeita, aprendizagem de corrupção, ocasião decontato com indivíduos de toda origem? O mestre é a tirania, a injustiça, o terror? Omerecimento não tem cotação, cobrejam as linhas sinuosas da indignidade,aprova-se a espionagem, a adulação, a humilhação, campeia a intriga, amaledicência, a calúnia, oprimem os prediletos do favoritismo, oprimem os maiores,os mais fortes, abundam as seduções perversas, triunfam as audácias dos nulos? Areclusão exacerba as tendências ingênitas?Tanto melhor: é a escola da sociedade.Ilustrar o espírito é pouco; temperar o caráter é tudo. É preciso que chegueum dia a desilusão do carinho doméstico. Toda a vantagem em que se realize omais cedo.A educação não faz almas: exercita-as. E o exercício moral não vem dasbelas palavras de virtude, mas do atrito com as circunstâncias.A energia para afrontá-las é a herança de sangue dos capazes damoralidade, felizes na loteria do destino. Os deserdados abatem-se.Ensaiados no microcosmo do internato, não há mais surpresas no grandemundo li fora, onde se vão sofrer todas as convivências, respirar todos osambientes; onde a razão da maior força é a dialética geral, e nos envolvem asevoluções de tudo que rasteja e tudo que morde, porque a perfídia terra-terra é umdos processos mais eficazes da vulgaridade vencedora; onde o aviltamento é quasesempre a condição do êxito, como se houvesse ascensões para baixo; onde o poderé uma redoma de chumbo sobre as aspirações altivas; onde a cidade é franca paraas dissoluções babilônicas do instinto; onde o que é nulo, flutua e aparece, como nomar as pérolas imersas são ignoradas, e sobrenadam ao dia as algas mortas e aespuma. 

O internato é útil; a existência agita-se como a peneira do garimpeiro: o quevale mais e o que vale menos, separam-se.Cada mocidade representa uma direção. Hão de vir os disfarces, ashipocrisias, as sugestões da habilidade, do esclarecimento intelectual; no fundo adireção do caráter é invariável. A constância da bússola é uma; temos todos umnorte necessário: cada um leva às costas o sobrescrito da sua fatalidade. O colégionão ilude: os caracteres exibem-se em mostrador de franqueza absoluta. O que temde ser, é já. E tanto mais exato, que o encontro e a confusão das classes e dasfortunas equipara tudo, suprimindo os enganos de aparato, que tanto complicam osaspectos da vida exterior, que no internato apagam-se no socialismo doregulamento.E não se diga que é um viveiro de maus germens, seminário nefasto de mausprincípios, que hão de arborescer depois. Não é o internato que faz a sociedade; ointernato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora. Os caracteres que alitriunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso, como os que se perdem, amarca da condenação.O externato é um meio-termo falso em matéria de educação moral; nem avida exterior impressiona, porque a família preserva, nem o colégio vive socialmentepara instruir a observação, porque falta a convivência de mundo à parte, que só areclusão do grande internato ocasiona. O internato com a soma dos defeitospossíveis é o ensino prático da virtude, a aprendizagem do ferreiro à forja,habilitação do lutador na luta. Os débeis sacrificam-se; não prevalecem. Os ginásiospara os privilegiados da saúde. O reumatismo deve ser um péssimo acrobata. Errograve combater o internato.Cumpre que se institua, que se desenvolva, que floresça e se multiplique aescola positiva do conflito social com os maus educadores e as companhiasperigosas, na comunhão corruptora, no tédio de claustro, de inação, de cárcere;cumpre que os generosos ardores da alma primitiva e ingênua se disciplinem nadesilusão crua e prematura, que nunca é cedo para sentir que o futuro importa emmais que flanar facilmente, mãos às costas, fronte às nuvens, através das praçasdesimpedidas da república de Platão.Durante a conferência pensei no Franco. Cada uma das opiniões doprofessor, eu aplicava onerosamente ao pobre eleito da desdita, pagando portrimestre o seu abandono naquela casa, alaguei do desprezo. Lembrava-me dodesembargador em Mato Grosso e da carta que eu lera e da irmã raptada, davingança extravagante dos cacos, da timidez baixa das maneiras, da concentraçãomuda de ódios, dos movimentos incompletos de revolta, da submissão final deescorraçado que se resigna. Tive pena.Depois da conferência fui visitá-lo.Estava de cama no salão verde, à direita, perto das janelas. Andavaadoentado desde a última vez que fora à prisão.Embaixo da casa. Fazia-se entrada pelo saguão cimentado dos lavatórios;sentia-se uma impressão de escuro absoluto; para os lados, a distancia, brilhavamvivamente, como olhos brancos, alguns respiradouros gradeados daquela espéciede imensa adega. O chão era de terra batida, mal enxuta. Impressionava logo umcheiro úmido de cogumelos pisados. Com a meia claridade dos respiradouros,habituando-se a vista, distinguia-se no meio uma espécie de gaiola ou capoeira detravessões fortes de pinho. Dentro da gaiola um banco e uma tábua pregada, pormesa. Sobre a mesa um tinteiro de barro. Era a cafua. 

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