A TERRA: CAPÍTULO V

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Uma categoria geográfica que Hegel não citou

Resumamos; enfeixemos estas linhas esparsas.

Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações étnicas:

As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.

Os llanos da Venezuela; as savanas que alargam o vale do Mississipi, os pampas desmedidos e o próprio Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros.

Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações, não se incompatibilizam com a vida.

Mas não fixam o homem à terra.

A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.

Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.

Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar a humanidade pelo vínculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doidas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.

Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.

Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.

Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...

Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.

Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.

Dilatam-se os horizontes. O firmamento sem o azul carregado dos desertos alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.

E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono.

Depois tudo isto se acaba. Voltam os dias torturantes; a atmosfera asfixiadora; o empedramento do solo; a nudez da flora; e nas ocasiões em que os estios se ligam sem a intermitência das chuvas — o espasmo assombrador da seca.

A natureza compraz-se em um jogo de antíteses.

Eles impõem por isto uma divisão especial naquele quadro. A mais interessante e expressiva de todas — posta, como mediadora, entre os vales nimiamente férteis e as estepes mais áridas.

Os Sertões (1902)Onde histórias criam vida. Descubra agora