Queimadas
Queimadas, povoado desde o começo deste século, mas em plena decadência, fez-se um acampamento ruidoso O casario pobre, desajeitadamente arrumado aos lados da praça irregular, fundamente arado pelos enxurros — um claro no matagal bravio que o rodeia — e, principalmente, a monotonia das chapadas que se desatam em volta, entre os morros desnudos, dão-lhe um ar tristonho completando-lhe o aspecto de vilarejo morto, em franco descambar para tapera em ruínas.
Prendiam-se-lhe, ademais, recordações penosas. Ali tinham parado todas as forças anteriormente envolvidas na luta, no mesmo prolongamento do largo aberto para a caatinga cujos tons pardos e brancacentos, de folhas requeimadas, sugeriam a denominação da vila. Acervos repugnantes de farrapos e molambos; trapos multicores e imundos, de fardamentos velhos; botinas e coturnos acalcanhados; quepes e bonés; cantis estrondados; todos os rebotalhos de caserna, esparsos em área extensa, em que branqueavam restos de fogueiras, delatavam a passagem dos lutadores, que lá armaram as tendas, a partir da expedição Febrônio. Naquele chão batido dos rastros de 10 mil homens, haviam turbilhonado na vozeria dos bivaques — paixões, ansiedades, esperanças, desalentos indescritíveis.
Páginas demoníacas
Transposta acessível ondulação, via-se, recortando o cerrado dos arbustos, um sulco largo de roçada, retilíneo e longo, que um alvo extremava — a linha de tiro, onde se exercitara a divisão Artur Oscar. Perto, ao lado, a capela exígua e baixa, como um barracão murado. E nas suas paredes, cabriolando doidamente, a caligrafia manca e a literatura bronca do soldado. Todos os batalhões haviam colaborado nas mesmas páginas, escarificando-as a ponta de sabre ou tisnando-as a carvão, no gravarem as impressões do momento. Eram páginas demoníacas aqueles muros sacrossantos: períodos curtos, incisivos, arrepiadores; blasfêmias fulminantes; imprecações, e brados, e vivas calorosos, rajavam-nas em todo o sentido, profanando-as, mascarando-as, em caracteres negros espetados em pontos de admiração, compridos como lanças.
Dali para baixo, no descair de insensível descida, uma vereda estreita e mal afamada — a estrada de Monte Santo, por onde tinham abalado, esperançosas, três expedições sucessivas, e de onde chegavam, agora, sucessivamente, bandos miserandos de foragidos. Vadeado o Jacurici, volvendo águas rasas e mansas, ela enfiava, inflexa, pelas chapadas fora, ladeada, em começo, por uma outra que demarcavam os postes da linha telegráfica recentemente estabelecida.
Uma ficção geográfica
A linha férrea corre no lado oposto. Aquele liame do progresso passa, porém, por ali, inútil, sem atenuar sequer o caráter genuinamente roceiro do arraial. Salta-se do trem; transpõe-se poucas centenas de metros entre casas deprimidas; e topa-se para logo, à fímbria da praça — o sertão...
Está-se no ponto de tangência de duas sociedades, de todo alheias uma à outra. O vaqueiro encourado emerge da caatinga, rompe entre a casaria desgraciosa, e estaca o campião junto aos trilhos, em que passam, vertiginosamente, os patrícios do litoral, que o não conhecem.
Fora da pátria
Os novos expedicionários ao atingirem-no perceberam esta transição violenta. Discordância absoluta e radical entre as cidades da costa e as malocas de telha do interior, que desequilibra tanto o ritmo de nosso desenvolvimento evolutivo e perturba a unidade nacional. Viam-se em terra estranha. Outros hábitos. Outros quadros. Outra gente. Outra língua mesmo, articulada em gíria original e pinturesca. Invadia-os o sentimento exato de seguirem para uma guerra externa. Sentiam-se fora do Brasil. A separação social completa dilatava a distância geográfica; criava a sensação nostálgica de longo afastamento da pátria.