Depoimento do autor
Desvendemo-las rudemente.
Deponhamos.
O fato era vulgar. Fizera-se pormenor insignificante.
Começara sob o esporear da irritação dos primeiros reveses, terminava friamente feito praxe costumeira, minúscula, equiparada às últimas exigências da guerra. Preso o jagunço válido e capaz de aguentar o peso da espingarda, não havia malbaratar-se um segundo em consulta inútil. Degolava-se; estripava-se. Um ou outro comandante se dava o trabalho de um gesto expressivo. Era uma redundância capaz de surpreender.
Dispensava-a o soldado atreito à tarefa.
Esta era, como vimos, simples. Enlear ao pescoço da vítima uma tira de couro, num cabresto ou numa ponta de chiquerador; impeli-la por diante; atravessar entre as barracas, sem que ninguém se surpreendesse; e sem temer que se escapasse a presa, porque ao mínimo sinal de resistência ou fuga um puxão para trás faria que o laço se antecipasse à faca e o estrangulamento à degola. Avançar até à primeira covanca profunda, o que era um requinte de formalismo; e, ali chegados esfaqueá-la. Nesse momento, conforme o humor dos carrascos, surgiam ligeiras variantes. Como se sabia, o supremo pavor dos sertanejos era morrer a ferro frio, não pelo temor da morte senão pelas suas consequências, porque acreditavam que, por tal forma, não se lhes salvaria a alma.
Exploravam esta superstição ingênua. Prometiam-lhes não raro a esmola de um tiro, à custa de revelações. Raros o faziam. Na maioria emudeciam, estoicos, inquebráveis — defrontando a perdição eterna. Exigiam-lhes vivas à República. Ou substituíam essa irrisão dolorosa pelo chasquear franco e insultuoso de alusões cruéis, num coro hilar e bruto de facécias pungentes. E degolavam-nos, ou cosiam-nos a pontaços. Pronto. Sobre a tragédia anônima, obscura, desenrolando-se no cenário pobre e tristonho das encostas eriçadas de cactos e pedras, cascalhavam rinchavelhadas lúgubres, e os matadores volviam para o acampamento. Nem lhes inquiriam pelos incidentes da empresa. O fato descambara lastimavelmente à vulgaridade completa. Os próprios jagunços, ao serem prisioneiros, conheciam a sorte que os aguardava. Sabia-se no arraial daquele processo sumaríssimo e isto, em grande parte, contribuía para a resistência doida que patentearam. Render-se-iam, certo, atenuando os estragos e o aspecto odioso da campanha, a outros adversários. Diante dos que lá estavam, porém, lutariam até à morte.
E quando, afinal jugulados, eram conduzidos à presença dos chefes militares, iam conformados ao destino deplorável. Revestiam-se de serenidade estranha e uniforme, inexplicável entre lutadores de tão variados matizes, e tão discordes caracteres, mestiços de toda a sorte, variando, díspares, na índole e na cor.
Alguns se aprumavam com altaneria incrível, no degrau inferior e último da nossa raça. Notemos alguns exemplos.
Um negro, um dos raros negros puros que ali havia, preso em fins de setembro, foi conduzido à presença do comandante da 1ª coluna, general João da Silva Barbosa. Chegou arfando, exausto da marcha aos encontrões e do recontro em que fora colhido Era espigado e seco. Delatava na organização desfibrada os rigores da fome e do combate. A magreza alongara-lhe o porte, ligeiramente curvo. A grenha, demasiadamente crescida, afogava-lhe a fronte estreita e fugitiva; e o rosto, onde o prognatismo se acentuara, desaparecia na lanugem espessa da barba, feito uma máscara amarrotada e imunda. Chegou em cambaleios. O passo claudicante e infirme, a cabeça lanzuda, a cara exígua, um nariz chato sobre lábios grossos, entreabertos pelos dentes oblíquos e saltados, os olhos pequeninos, luzindo vivamente dentro das órbitas profundas, os longos braços desnudos, oscilando — davam-lhe a aparência rebarbativa de um orango valetudinário.
Não transpôs a couceira da tenda.
Era um animal. Não valia a pena interrogá-lo
O general de brigada João da Silva Barbosa, da rede em que convalescia de ferimento recente, fez um gesto. Um cabo-de-esquadra, empregado na comissão de engenharia e famoso naquelas façanhas, adivinhou-lhe o intento Achegou-se com o braço. Diminuto na altura, entretanto, custou a enleá-lo ao pescoço do condenado. Este, porém, auxiliou-o tranquilamente; desceu o nó embaralhado; enfiou-o pelas próprias mãos, jugulando-se...