Outros reforços
Era urgente uma intervenção mais enérgica do governo. Impunham- na, do mesmo passo, as apreensões crescentes, as últimas peripécias da luta e a própria insciência sobre o curso real das operações. As opiniões como sempre disparatavam, discordes. Para a maioria os rebeldes contavam com elementos sérios. Era evidente. Não se compreendia que batidos em todas as ordens do dia — heroicamente escritas — eles, tendo ainda franca a fuga para os sertões de S. Francisco, onde não havia descobri-los, esperassem, pertinazes, no arraial, que se lhes fechassem, pelo complemento do assédio, as derradeiras saídas. Deduziam-se, lógicos, corolários graves. À parte a hipótese do sobre-humano devotamento, fazendo-os sucumbir em massa sob os escombros dos templos consagrados, imaginavam-se-lhes traças guerreiras formidáveis embaralhando de todo a estratégia regular. O número, que se dizia diminuto, dos que permaneciam em Canudos arrostando tudo, era, certo, um engodo armado a arrastar para ali exclusivamente o exército e iludi-lo em combates estéreis, até que se congregassem, noutros lugares, fortes contingentes para o assalto final, por toda a banda, sobre os sitiantes, pondo-os entre dois fogos.
Contravinham, porém, juízes mais animadores. O coronel Carlos Teles, em carta dirigida à imprensa, afirmou de maneira clara o número reduzido de jagunços — duzentos homens válidos, talvez sem recursos nenhuns — , abastecidos e aparelhados apenas do que haviam tomado às anteriores expedições. O otimismo, de fato exageradíssimo, do valente, porém, afogou-se na incredulidade geral. Aniilavam-no todos os fatos e sobretudo aquelas irrupções diárias de feridos, abalando num crescendo a comoção nacional.
A Brigada Girard
Sobrevieram outros por igual desastrosos. Atendendo aos primeiros reclamos do general Artur Oscar, o governo tinha prontamente organizado uma brigada auxiliar que, ao revés das demais, não entrava na luta distinta por um número seco e inexpressivo. Tinha, segundo louvável praxe, sem curso entre nós, mercê da qual se amplia sobre os comandados a glória do comandante, um nome — Brigada Girard.
Dirigia-a o general Miguel Maria Girard e formavam-na três corpos, saídos da guarnição da Capital Federal: o 22º, do coronel Bento Tomás Gonçalves, o 24º, do tenente Rafael Tobias, e o 38º, do coronel Filomeno José da Cunha. Eram 1.042 praças e 68 oficiais, perfeitamente armados e levando para a luta insaciável o repasto esplêndido de 850 mil cartuchos Mauser.
Mas, por um conjunto de circunstâncias, que fora longo miudear, ao invés de auxiliar esta tropa tornou-se um agente debilitante. Abalou do Rio de Janeiro comandada pelo chefe que lhe dera o nome e foi com ele até Queimadas, onde se reuniu a 31 de julho. Partiu de Queimadas a 3 de agosto, dirigida por um coronel, até Monte Santo. Largou de Monte Santo para Canudos, a 10 de agosto, sob o comando de um major. Deixara na Bahia um coronel e alguns oficiais — doentes. Deixara em Queimadas um general, um tenente-coronel e mais alguns oficiais — doentes. Deixara em Monte Santo um coronel e mais alguns oficiais — doentes...
Heroísmo estranho
Decompunha-se pelas estradas. Partiam-lhe do seio pedidos de reforma mais alarmantes do que aniquilamentos de brigadas. Salteara-a um beribéri excepcional exigindo não já a perícia de provectos médicos senão o exame de psicólogos argutos. Porque afinal o medo teve ali os seus grandes heróis, revelando a coragem estupenda de dizer a um país inteiro que eram covardes.
Ao endireitar de Queimadas para o sertão aquela força encontrara as primeiras turmas de feridos e fora sulcada pelo assombro da guerra. Passaram-lhe pelo meio do acampamento, em Contendas, o general Savaget, o coronel Nery, o major Cunha Matos, o capitão Chachá Pereira e outros oficiais. Recebeu-os ainda entusiasticamente: oficiais e praças enfileirados às margens do caminho, saudando-os. Mas depois amorteceu- se-lhe o fervor. Apenas com três dias de viagem, começou de sofrer privações, vendo diminuídos os víveres que levava e repartia com as sucessivas turmas de feridos encontrados, chegando exausta e esmorecida a Monte Santo.
Em viagem para Canudos
Tomou para Canudos onde era ansiosamente esperada, a 10 de agosto, despida inteiramente do esplêndido aparato hierárquico com que nascera. Dirigia-a o fiscal do 24º, Henrique de Magalhães, estando os corpos comandados pelo major Lídio Porto e capitães Afonso de Oliveira e Tito Escobar. A marcha foi difícil e morosa. Desde Queimadas lutava-se com dificuldades sérias de transporte. Os cargueiros, animais imprestáveis, velhos e cansados, muares refugados das carroças da Bahia e tropeiros improvisados — rengueavam, tropeçando pelos caminhos, imobilizando os batalhões, e remorando a avançada.
Chegou desse modo a Aracati, onde lhe foi entregue um comboio que devia guarnecer até Canudos.
Neste comenos dizimava-a a varíola. Destacavam-se das suas fileiras, diariamente, dois ou três enfermos, volvendo para o hospital, em Monte Santo. Outros, estropiados, naquela repentina transição das ruas calçadas da Capital Federal para aquelas ásperas veredas, distanciavam-se, perdidos à retaguarda, confundindo-se com os feridos, que vinham em direção oposta.
De sorte que ao passar em Juetê, no dia 14 de agosto, lhe foi providencial o encontro com o 15º Batalhão de Infantaria, já endurado na luta, e que viera de Canudos. Porque no dia seguinte, depois de decampar das Baixas, onde parara na véspera para aguardar a vinda de grande número de praças retardatárias, foi no Rancho do Vigário violentamente atacada. Os jagunços aferraram-na de flanco, pela direita, do alto de um cerro dominante, e quase de frente, de uma trincheira marginal. Abrangeram-na toda uma descarga única. Tombaram mortos na guarda da frente um alferes do 24º e, na extrema retaguarda, outro, do 38º. Baquearam algumas praças nas fileiras intermédias. Alguns pelotões se embaralharam estonteadamente surpresos, bisonhos ainda ante os guerrilheiros ferozes. A maioria disparou desesperadamente as armas. Estrugiram cornetas, vozes trêmulas, altas, entrecortadas, desencontradas, de comando. Dispararam, espavoridos, os cargueiros. A boiada estourou, mergulhando na caatinga...
O 15º Batalhão tomando a vanguarda guiou os lutadores vacilantes. Não se repeliu o inimigo. A retaguarda ao passar pelo mesmo ponto foi, por sua vez, alvejada.
Depois deste revés, porque o foi, bastando dizer-se que de 102 bois que comboiava restaram apenas onze, foi a brigada novamente investida no Angico. Deu uma carga de baionetas platônica em que não perdeu um soldado, entrando afinal em Canudos, onde os enrijados campeadores, que ali estavam sob a disciplina tirânica dos tiroteios diuturnos, a acolheram com a denominação de Mimosa, nome, que, entretanto, mais tarde, os bravos oficiais fizeram que se apagasse, a exemplo do primeiro título.