A criatura da floresta

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Berilo Montez era um rapaz muito simpático. Com seus quinze anos, fizera dezenas de amigos e amigas no colegial. Não pensava no futuro, queria apenas curtir a vida ao máximo. Responsabilidades viriam no tempo certo. Com seu corpo pálido e esguio, possuía agilidade nos esportes e arrancava suspiros das garotas ao marcar incríveis gols no handball. Sua marca registrada era remexer nos volumosos cabelos louros que desciam até o pescoço e jogar um beijinho às meninas eufóricas.
Evidente que muitos rapazes não o suportavam, pois ele chamava toda a atenção para si. Alguns só se aproximavam para tentar aprender os segredos de todo esse carisma. Dos professores ele não era lá muito querido, pois ficava alheio a maioria das matérias. Estudar sempre ficava para depois.
Em certa aula de física, o professor reparou que ele tinha o olhar vago na direção da janela, mordendo o lápis com certa insistência:
− No mundo da lua novamente, Berilo?
− Oi, o quê? Claro que não, professor. "O sujeito é o que pratica a ação!"
− Correto, mas estamos na aula de física, não de português.
− Ahhh...
Os risos ecoaram pela sala. O professor deu uma fungada e virou-se novamente para o quadro negro. Terminava de escrever a matéria explicando os termos aceleração, velocidade, tempo e distância, com as fórmulas para se chegar aos resultados.
− Um carro vermelho está numa estrada num trajeto retilíneo a cinquenta quilômetros por hora. Um carro azul está a trezentos metros atrás numa velocidade de setenta quilômetros. Quanto tempo o carro azul levará para alcançar o vermelho? A resposta em minutos, por favor - o professor sentou-se ouvindo com satisfação o arranhar da ponta dos lápis nas folhas dos cadernos.
"O sujeito é o que pratica a ação!" - pensava Berilo olhando a lousa com o olhar semicerrado; o lápis ainda sendo avariado pelos seus dentes - "O sujeito do carro azul está com mais pressa, disputa um racha com outros veículos, mas não se dá conta que se aproxima do carro vermelho e pode resultar numa colisão fatal, com uma explosão e corpos carbonizados voando pela pista..."
− Já sabe a resposta, Sr Montez?
− Não, professor, estou matutando nas variantes desse pequeno problema...
− Acho que está criando histórias à partir desse problema garoto! Esse é o seu problema: inventar histórias pra tudo! Deve aprender a lidar com o que é real. Histórias não te farão ser aprovado em física!
O instrutor acertou na mosca. O maior problema de Berilo era fantasiar toda a realidade que o rodeava. Para distrair os amigos por um tempo, isso era ótimo. Porém, na hora de resolver um problema matemático, era um caos. Se ele pudesse distribuir um pouco de sua concentração em criar histórias para estudar, tiraria dez em todas as disciplinas.
Deve imaginar o quão feliz ele ficou ao ganhar uma viagem ao acampamento chamado Girassol nas férias de verão, na primeira semana de janeiro de 2014. Iria com seis amigos e seus respectivos pais. Quando lá chegassem, estariam sob os cuidados dos administradores do lugar. Afinal, não havia animais selvagens ou venenosos na grande área verde do parque. Os jovens podiam montar as próprias barracas e comer marshmallows no espeto.
A diversão era garantida para Berilo. Imaginava quantas histórias poderia contar ao redor da fogueira até o sono chegar. Sua especialidade seria posta a prova. Todos iriam aplaudi-lo e ficariam felizes. Apavorados, mas felizes. A realidade não tinha graça para o louro simpático. Além disso, era suja, infestada de segredos inconfessáveis. Ele mesmo, em plena puberdade, masturbava-se olhando as fotos da amiga Charlene Novaes na rede social de seu smartphone. Imagens sensuais, sem mostrar nada de fato. A imaginação do adolescente corria solta pelo vale da sexualidade.
Mas essa não era uma história para se contar. A ninguém.
Cada amigo e amiga tinha seu segredinho mais sujo. A começar pelo baderneiro Anderson Souza, a inspiração para o problema de física de Berilo, sem ele saber. Isso porque Souza disputara um racha há alguns meses e a diversão desenfreada culminou num atropelamento e posterior morte de um pedestre. Era noite, ninguém anotara a placa do carro de Anderson e ele simplesmente fugiu sem prestar socorro. A vítima era irmão de Melissa Ramos, a aluna mais velha da escola de Berilo, com vinte e dois anos na ocasião.
Melissa interrompeu os estudos para estudar administração e voltou para cursar o colegial já casada e com um filho pequeno. Desde criança sofrera com as exigências dos pais para estudar uma boa faculdade e ganhar muito dinheiro. Tudo fora pago pelo pai, que desejava que a moça dirigisse sua multinacional automobilística quando crescesse. Era demasiada pressão para uma mente que almejava finais de semana livres para se divertir. Mas a diversão ficara em último plano. Sempre. Até o casamento foi arranjado, nada menos que o braço direito do empresário, um puxa saco considerado o funcionário do mês todos os meses. A gravidez também não fora planejada e todos esses anos de frustrações e pressões sobraram para o filho. Melissa não tinha a mínima paciência com crianças, menos ainda com o próprio filho. O garoto vivia machucado, com marcas roxas e vermelhas, tal era a força das palmadas desferidas pela mãe. O marido trabalhava tanto, que simplesmente não notava a aparente TPM crônica da mulher. O filho era forçado a dizer que se acidentava sozinho ao brincar. Tinha três anos e já mentia com certa prática, o que difere da sinceridade comum da idade. Mas havia uma boa razão: Melissa ameaçava afastá-lo do pai, caso ele contasse a alguém que apanhava dela. O empresário quase não via o herdeiro acordado, pois voltava bem tarde, mas quando isso acontecia, enchia o menino de mimos. Quem mais desconfiava do comportamento da moça e do garoto era Leonardo Bastos.
Leonardo fazia o tipo observador, gostava de fofocar a respeito da vida alheia e essa atitude já lhe custara um emprego. Tinha dezoito anos e sempre procurava um jeito de se dar bem na vida. Porém, bebia além da conta e isso era um grande empecilho. Outro perigo era a arma que tinha em casa, um calibre 38. O pai tinha porte. Na escola, tirava boas notas, pois era especialista em colar. Em certa prova que valia uma bolsa de estudos, gabaritou todas as respostas furtando o conteúdo da sala da direção. Tudo o que ele precisava fazer era decorar as letras à circular nas questões de múltipla escolha. Mas nem isso ele fez. Escrevera bem miudinho a sequência das letras na face interna da proteção plástica de sua borracha em forma de tijolo. Disfarçando o máximo que pôde, descobria a borracha de tempos em tempos e via algumas letras. E em seguida circulava nas questões correspondentes antes que esquecesse. Enrolou um pouco para não ser o primeiro a entregar a prova completa, mas também não o último. Todos os colegas acharam que ele realmente tinha estudado pra valer antes do exame e o cumprimentaram, porém o legítimo nerd da sala, Rafael Duarte, detestou ser passado para trás.
Rafael, de dezesseis anos, vivia com a cara colada nos livros e nos monitores de computador. No curto espaço entre eles, apenas seus óculos de grau elevado, para amenizar sua miopia precoce. Para ele uma nota oito já era digna de frustração. Mas como quase todo estudioso em excesso, ele era péssimo no quesito "mulheres". Em seu íntimo invejava os paqueradores do colégio, que sem muito esforço viviam cercados das garotas mais atraentes e bem humoradas, como a jovem Dayse Silva. A garota mais nova do colégio, com apenas quatorze anos, era bem apegada à família, mas adorava matar aula para namorar na quadra de esportes quando vazia. Como ela nem olhava para Rafael, o rapaz se vingou do desprezo denunciando suas escapadas ao diretor da escola. Mantendo o anonimato, ele ficou satisfeito com a suspensão da garota e do namoradinho, justamente o tal Anderson, três anos mais velho.
Charlene Novaes, a quem Berilo admirava em segredo na solidão do banheiro, era a principal suspeita pela denúncia. Ela e Dayse nunca se deram bem, viviam discutindo por coisas fúteis. Porém Novaes extrapolou. Dayse tinha um cachorro pitbull. Apesar da má fama da raça, o animal era dócil e adorava brincar. Infelizmente não controlava a própria força. Certo dia perseguiu um dos gatos de Charlene e isso resultou na morte do bichano ao receber uma mordida no pescoço. A dona não pensou duas vezes. Fez justiça com as próprias mãos, indo sorrateiramente a casa dos Silva e envenenando o cachorro. A jovem não desconfiou de Charlene, pois também nem sonhava que o gato morto era da rival. Ocorrera à noite e como dizem, "todo gato é pardo".
Livres da vigilância dos pais, os sete jovens aproveitaram tudo o que havia de melhor no acampamento. Boa comida, ar puro, um verdadeiro paraíso. O sol escaldante convidava a todos para um banho no rio. Felizmente todos sabiam nadar. O salva vidas do parque ficou de plantão até a diversão terminar.
Ao entardecer, iniciou-se a montagem das barracas. Todos colaboravam, exceto Charlene, que temia quebrar as unhas. Dayse sentiu uma pontada de saudade dos pais e se pôs a contemplar o pôr do sol com um ar de tristeza. Anderson ficou lançando cantadas ridículas à fim de chamar a atenção de Melissa, que só queria tirar fotos do lugar para futuramente compartilhar o passeio com o marido e o filho, que não puderam acompanhá-la. Leonardo curtia a natureza observando os pássaros no cume das árvores, com um binóculo. Já Rafael mergulhou num livro de medicina. O capítulo que explicava em detalhes a reprodução humana com imagens reais do aparelho reprodutor feminino particularmente o excitava. Finalmente, Berilo ficou de papo com os administradores e zeladores do local, ganhando pontos e fazendo mais amizades.
Á noite, uma clássica fogueira na margem do rio, o vento açoitando as árvores e o cabelo das moças. Formaram uma roda ao redor das chamas para que o vento não as reduzissem às cinzas. Trocaram profundos olhares de curiosidade e logo em seguida os rostos se viraram instintivamente para Berilo. O momento da noite era exclusivamente dele. Todos esperavam uma história que animasse a noite. O silêncio foi geral; até os murmurinhos e risadinhas foram cessados. O último marshmallow jazia esquecido no fundo do pacote.
Montez parecia sem inspiração. Todo o cenário propício e as atenções que poderia desejar causaram-lhe uma espécie de bloqueio mental. Ele não saberia definir isso melhor. Temendo ser vaiado pelos amigos, começou a dizer qualquer coisa a respeito de sete jovens numa floresta, sem se referir a nenhum deles especificamente:
− Certa noite, sete jovens percorriam uma floresta escura portando fracas lanternas à procura de um cãozinho desaparecido...
Dayse sentiu um calafrio. Veio-lhe a mente a última imagem de seu pitbull ainda com vida, agonizando sob efeito do veneno.
Cabeças começaram a convergir na direção do contador da história. Montez adquiria agora mais confiança. Então um movimento de luz no céu dispersou a atenção de todos:
− Era um avião? - interrogou Charlene, com uma nota de temor.
− Impossível, era rápido demais! - apontou Anderson.
A luz apareceu em vários pontos do céu estrelado; nos segundos em que permanecia no mesmo lugar, os expectadores notaram uma infinidade de cores, como um arco-íris oval. Melissa arriscou um palpite óbvio:
− É um disco voador!
− Bobagem, deve ser algum teste para um show que o acampamento está planejando - interveio Leonardo, com um muxoxo.
− É um OVNI, não significa que seja uma nave alienígena - explicou o brilhante Rafael, ajeitando os óculos como binóculos precisos na direção do objeto.
− Vou tentar falar com o guarda noturno do parque. Mais tarde continuo a minha história - decidiu Murilo, levantando-se e piscando para a turma.
Nem bem todos se puseram em pé, o aro cintilante e colorido desceu até a área florestal do acampamento como um raio, liberando uma luz branca e intensa como se uma parte do sol tivesse pousado ali. Todos desviaram o olhar até a luminosidade voltar ao normal. Apenas a fogueira e a lua iluminavam o cenário.
Houve um silêncio geral, no qual até o vento colaborou. Só se ouvia os estalos da lenha sob as chamas trepidantes. Até que a jovem Dayse arriscou um palpite:
− Acho que tivemos uma ilusão de ótica coletiva!
− Ah, é, então quem me acompanha até a mata à procura da nossa "ilusão de ótica"? - zombou Anderson tomando decididamente uma lanterna.
− Deveríamos esperar até o amanhecer...
− Está louca, Melissa! Como iremos saber se não existe alguma criatura que possa nos atacar enquanto dormimos? - gemeu Charlene, quase aos prantos.
− Tem medo de ser abduzida no meio de seu sono de beleza, boneca? - caçoou Leonardo, disfarçando seus batimentos acelerados.
− O mais sensato é irmos todos juntos avisar os guardas de plantão e eles tomarão as providências - aconselhou Berilo, contornando as barracas e tomando a trilha que levava a cabana do guarda florestal. Levou consigo uma das lanternas do grupo.
Os amigos se entreolharam, confusos. Anderson pressionou os dedos ao redor da cintura, ainda convicto de que deveria olhar pessoalmente o provável local da queda das luzes. Tomou a maior lanterna e iluminou a trilha. Deu cinco passos entre as árvores quando Duarte agarrou seu braço esquerdo:
− Me largue, seu nerd. Não precisamos de guardas para investigar umas luzes idiotas que caíram do céu.
Rafael reduziu a força do aperto. O corajoso colega se esquivou e adentrou pela mata. Sua determinação vacilou quando notou que ninguém o seguia. Alternava seu campo de visão entre a floresta e ao acampamento. O suor escorria por sua face. Então um farfalhar furtivo em uma moita o estremeceu por inteiro. Anderson abafou um soluço de pânico vindo do fundo da garganta. Uma cratera havia se formado no ponto onde aterrissara o raio de luz. Um líquido viscoso e escuro escorreu emergindo do buraco como sangue jorrando do ferimento da terra. Ou lava vulcânica sendo expulsa do centro do planeta. O líquido serpenteava entre as árvores e as pedras, como se tivesse vida própria. Sim, ele sentia o cheiro, a presença de uma vítima, um humano de quem poderia extrair alimento.
Anderson ficou congelado de pânico, assim como suas cordas vocais, das quais não saíam um sussurro de socorro. O rio faminto correu até a planta de seus pés e ali estacou. Uma pequena poça formou-se e começou a borbulhar como se aquecida a mil graus. A vítima direcionou o facho da lanterna ao chão e foi a última imagem que presenciou antes de ser encontrado. Sentiu uma dormência, algo subindo pelas suas pernas, sólido e frio.
Berilo retornou ao encontro do grupo. Não havia nenhum guarda de plantão no posto de vigilância. A revolta tomou conta dos amigos:
− Que merda! Eles foram embora e nos deixaram sozinhos aqui? - bradou Leonardo.
− Vou ligar para meu marido. Ele vai processar o dono desse lugar! - instigou Melissa, agitando os longos cabelos negros.
− E faz um tempão que o Anderson entrou na mata e não voltou! - interveio Charlene.
− Vamos todos buscar ele. Assim ninguém mais vai se perder! - Montez tomou a frente da situação seguindo o caminho apontado por Rafael, que tirara os óculos para coçar os olhos (para não acrescentar enxugar as lágrimas).
Os amigos não andaram por muito tempo. Berilo viu uma luz rente ao solo e apertou o passo. Quando se agachou, mostrou aos demais a lanterna do investigador solitário. Eles avistaram a cratera, mas nada do rapaz. O solo estava seco também e ninguém desconfiou do perigo até um novo ataque.
Dayse avistou o corpo do namorado estirado atrás de uma moita e teve um ataque histérico. Melissa, a mais velha e forte das mulheres, segurou seus braços tampando-lhe a boca, extinguindo-se assim seus gritos. Anderson estava rígido, branco como cera e seus olhos escancarados e inexpressivos completavam uma imagem cadavérica de alguém que partira deste mundo há dias. Seu tórax não se movia, mas Leonardo, o mais controlado emocionalmente, checou sua pulsação e viu que ainda existia:
− ESTÁ VIVO! - anunciou - Vamos carregá-lo até nossa barraca. A adolescente continuava agitada...até sentir uma ardência na perna esquerda. Será que havia alguma aranha escondida na moita que a picou? Ela não teve tempo de entrar em pânico com a possibilidade de ser envenenada; seus olhos saíram do foco e ela ficou imóvel. A morena que a segurava notou rapidamente sua inatividade.
− Dayse, DAYSE, fale comigo!
Enquanto os três homens carregavam Anderson, Melissa chacoalhava a moça pelos ombros, esperando uma reação, nem que fosse outro ataque histérico. Porém, ela apresentava os mesmos sintomas do aventureiro que acabaram de achar.
Anderson ficou na barraca dos marmanjos e Dayse na das damas. Tentaram chamar a polícia e ambulância pelos celulares, mas sem sucesso. Nem para os números de emergência essas porcarias do século 21 funcionavam.
Duas da manhã, ninguém dormiu por causa de uma história de terror contada. Eles viviam uma. Anderson recobrou os sentidos, mas não se lembrava absolutamente de nada, nem de onde estava, nem o próprio nome.
− Verifique de novo a cabeça dele! - ordenou Berilo, nervoso.
− Já olhei, não há nenhum ferimento nela! - respondeu Leonardo em tom seco.
− Vou verificar se a Dayse já está falando! - Rafael deixou a barraca.
No meio do caminho, olhou para o lado e viu que um curso do rio se alastrava pela areia, vindo em sua direção. Era escuro e pegajoso como lama. Contornou graciosamente as cinzas da fogueira que eles haviam feito e sugou o garoto pelos pés. O apetite da criatura era voraz, mas havia muita informação num nerd para ser aproveitada de todas as formas. Os óculos do rapaz saltaram, ele soltou um gemido prolongado e caiu de joelhos sobre a poça borbulhante que o consumia. Satisfeita, a gosma adentrou a areia como um bicho subterrâneo e desapareceu, deixando a vítima entregue a própria sorte, sem consciência, nem lembranças.
Algum tempo depois, Melissa teve a mesma ideia de Rafael, ao presenciar a total perda de memória da mais nova do grupo. Assim sendo, foi a primeira a avistar o rapaz de visão deficiente que não poderia dar nenhum exemplo de conhecimento em qualquer assunto. Ela gritou bem alto para chamar a atenção dos demais. Em segundos, estava cercada: Berilo e Leonardo de um lado, Charlene do outro.
Foi então que todos desvendaram a origem do problema: O líquido gosmento dessa vez emergiu sob as cinzas da fogueira, se agarrou aos pés descalços da mulher como uma cola de grande eficiência e no segundo seguinte ela esbugalhou os olhos ficando sem expressão, como em total estado de hipnose. Para amedrontar ainda mais, o líquido tomou uma forma tridimensional, se elevando como se um homem fosse surgir sob toda aquela gelatina marrom. No entanto, apenas uma boca foi visível. Não uma boca humana, mas uma bocarra com dezenas de dentes pontiagudos. Dali veio um rugido, como uma rajada de vento e semelhante a um leão.
Charlene correu para a barraca dos jovens, pedindo proteção. Os três se fecharam na barraca, ofegantes e tremendo, deixando Melissa e Rafael no meio do caminho como meras presas insignificantes que não precisavam de mais atenção. O pânico os venceu. Quando puderam formular alguma frase, Leo tomou a dianteira:
− Quê porra era aquela?
− Só pode ser um alienígena. O que vimos cair do céu realmente foi um disco voador! - gemeu Novaes.
− Mas não havia nenhum disco voador naquela cratera! - protestou Bastos.
− Assim mesmo acho que ela tem razão! - opinou Berilo, desejando ardentemente beijar a garota e consolá-la o melhor que podia. Nunca teria outra oportunidade melhor. Mas faltava coragem - Nenhuma criatura deste planeta é capaz de se alimentar de memórias!
− Vamos analisar os fatos! Nossos amigos estão bem, só precisam recuperar as memórias e creio que isso só será possível se matarmos a criatura. Se eu tivesse trazido a arma do meu pai...
− Primeiro, Leo, não sabemos se uma arma de fogo dá conta do recado; segundo, não temos certeza se isso trará as lembranças de volta como num passe de mágica.
− Se a digestão ainda não foi processada, talvez aconteça! - nem Berilo imaginava dizer uma maluquice dessas nem nas suas melhores histórias de improviso.
− Se ao menos pudéssemos contatar alguém pelo celular...
− Há um telefone público ao lado da cabana do guarda florestal!
− E quem vai se arriscar a ir até lá, Sr Montez? - desafiou Novaes.
Era hora da verdade. O contador de histórias precisava provar que merecia aquela garota, que tinha o direito de fantasiar cenas eróticas com ela enquanto a contemplava pela Internet. Ele abaixou o zíper que selava a barraca, sem pensar duas vezes.
− Devemos ir juntos. Se nos separarmos estaremos mais vulneráveis! - disse sabiamente o outro jovem - Além disso, aquele monstro se arrasta sob a terra. Esta barraca não oferece nem um pingo de proteção a nós. Só não fomos atacamos porque ele ainda deve estar digerindo as lembranças de nossos amigos.
− Se você estiver certo, Leo, temos um bom tempo! Até ele absorver todo o conhecimento de Duarte, já terá amanhecido! - tentou descontrair Montez.
Charlene fez um esgar reprovando a brincadeira numa hora dessas. Os três sobreviventes percorreram a trilha, cada um portando uma lanterna, refazendo o caminho feito anteriormente por Montez sozinho. Qualquer ruído era apurado imediatamente. Leo ia na retaguarda, murmurando uma oração. Fez várias delas, uma seguida da outra, como se pagasse uma punição por um pecado grave.
Quando chegaram à cabine telefônica, a moça inseriu o cartão, pegou o fone e discou um número. Os rapazes vigiavam os arredores. Mas numa fração de segundo, um vulto se ergueu ao lado da cabana. Não era um guarda. Leonardo o viu primeiro e passou a rezar mais alto, pegando um toco de madeira como arma. Os dentes da fera sem forma definida ficaram à mostra, prontos a atacar. Charlene soltou o fone com o susto antes que alguém atendesse. O monstro se abaixou, se agarrando as pernas de Leo como uma sombra furtiva. As orações cessaram.
Berilo arrastou a moça para dentro da cabana, trancou a porta e a janela. O chão era de mármore, duro como rocha. Havia um compartimento para o banheiro e um forno elétrico numa mesa de canto. O restante do espaço de cinco metros quadrados não passava de um escritório. Um monitor de computador exibia várias câmeras situadas em vários pontos transitáveis do parque. Uma delas focalizava a entrada de onde eles se achavam. Pela imagem da câmera em preto e branco, viram uma poça de lama se arrastando para o interior da praça ali em frente, se ocultando na grama alta do local:
− Acho que ela não pode entrar aqui por causa do solo, ou está esperando a digestão da memória de Leo antes de nos atacar! - arriscou Montez.
− Então ficaremos presos aqui o resto da noite? - bufou Novaes.
− Pelo menos até os guardas diurnos chegarem. Se todos nós perdemos a memória ninguém poderá testemunhar o que aconteceu. Já pensou na matéria dos jornais? "Sete jovens são encontrados com amnésia num acampamento de férias." - ele fantasiou, já cogitando em contar sua própria história de terror real.
− Você já havia entrado aqui antes?
− Claro, quando vim procurar os guardas, há umas duas horas. Sabia que a porta estava destrancada. Isso sugere que os seguranças também estão no perímetro do parque, provavelmente sem memória também. Como podemos combater uma criatura que se esconde por baixo da terra?
− Com um terremoto! - arriscou a moça, deixando-se entrar no clima da aventura - talvez com um tremor violento o monstro vomite as lembranças de nossos amigos.
− Infelizmente não temos como provocar um terremoto e naturalmente eles não acontecem no Brasil. Se estivéssemos no Japão...haveria esperança.
Charlene revistou as gavetas da escrivaninha, até encontrar um molho de chaves grande e significativo. Seus olhos verdes brilharam justamente de esperança. Leu as inscrições na chave e soltou um gritinho.
− São as chaves do parque! Se chegarmos até os portões, fugiremos deste local maldito, então talvez os celulares recuperem o sinal e pediremos ajuda. Quero ver se esse monstro sabe correr tão bem no asfalto quanto na terra.
− Mas os portões de entrada estão muito longe...
− Esse lugar não é tão imenso assim. Somos os únicos hóspedes. Não quero esperar mais três horas até chegar alguém...
− Se essa criatura é um alienígena, talvez possua uma tecnologia avançada de se alimentar de informações. Decerto pode absorver algo além da nossa vã biologia...
− Quê merda é isso, Berilo? Tá filosofando agora?
O rapaz também passou a remexer as gavetas sem responder. A garota passou a observar as imagens das câmeras tentando visualizar a criatura numa delas. Então percebeu que numa das telas, visualizava o centro do acampamento onde estavam. Ao redor das cinzas da fogueira, Anderson, Dayse, Rafael e Melissa pareciam conversar como se estivessem se conhecendo. Qual assunto interessante poderia sair de mentes vazias?
Então uma batida na porta acelerou o coração de ambos a mil por hora. Do lado de fora, escutaram uma voz familiar:
− Tem alguém aí?
Os dois sobreviventes se entreolharam espantados.
− Será que é o Leonardo? Ele se recuperou rápido demais da perda de memória! - opinou o contador de histórias.
− Talvez a criatura não tenha sugado tudo. Deixe ele entrar...
− Está louca? O monstro deve estar esperando para nos atacar assim que abrirmos a porta.
− Calma, deixe eu ver a imagem da câmera da porta... - ela contornou a mesa e observou a cena. Apenas Leo se movia com impaciência na frente da entrada - Pode abrir, puxe-o pelo braço correndo e a tranque de novo.
Berilo obedeceu. Seguro dentro da cabana, Leo sentou-se de cabeça baixa num banquinho sem encosto, cruzou os dedos e foi interrogado:
− Não sei quem são vocês. Bati na porta porque estava com muito medo lá fora. - argumentou o jovem, sem encarar os interrogadores.
− Merda, os mesmos sintomas dos outros, incluindo a palidez e... as pernas sujas?
− Espera, Berilo, os outros não estavam com as pernas sujas...
Um arrepio tomou conta da espinha de ambos, Berilo contornou a mesa e enfiou a mão esquerda no fundo de uma gaveta. Novaes tentou avaliar rapidamente se a sujeira que ia da planta dos pés até os joelhos do amigo eram lama comum, apesar da terra do lado de fora estar seca como um deserto. Grande burrada! Ao tocar a panturrilha de Leo, ela sentiu uma forte vertigem, acompanhada de um formigamento na mão e desmaiou. Leonardo gargalhou e quando Montez percebeu a gravidade da situação, uma poça se formara aos pés do amigo e deslizara até a porta. Não haveria fuga para o último sobrevivente.
O monstro se elevou do solo até altura da porta, assumindo a forma de uma pessoa fantasiada de fantasma usando um lençol marrom. A bocarra se abriu novamente, mas dessa vez uma voz humana, rouca e distorcida como aquelas gravações sigilosas que testemunhas de um crime prestam depoimento:
− Essa moça foi a mais gostosa que já degustei. Você também gostaria de prová-la, só que de outra forma, não é Berilo?
O rapaz engoliu em seco. Não segurava uma arma e também nem sabia se faria algum efeito na fera. Tentou ganhar alguns minutos de tempo buscando respostas:
− De onde você veio? Como sabe o meu nome?
− Perguntas retóricas, moleque! Já sabe as respostas! Vim do espaço e tenho todas as informações a seu respeito que adquiri de seus amigos repletos de segredos sujos. Vocês são aperitivos, uma parcela pobre de conhecimento inútil. Apenas a do Rafael foi mais proveitosa a nível intelectual. Mas já que estou aqui vou saborear o seu conhecimento também, afinal você é o último desse parque!
− Vai se arrepender! Não sou nenhum gênio de física quântica, mas tenho a mente repleta de contos fantásticos. Vou provocar uma indigestão em você! - desafiou.
− Sua biologia não pode superar minha capacidade de absorção. Prepare-se para ser internado num hospital psiquiátrico com seus amigos...
A criatura se esgueirou fazendo ondas no caminho até atingir as pernas da vítima. Berilo rapidamente deduziu que ela atacava pelas pernas das pessoas porque seria perigoso sugar o conhecimento direto da cabeça. Era como abocanhar uma colherada exageradamente grande e quente de comida de uma só vez. A gente não aguenta a acaba cuspindo.
Então o corajoso rapaz deu um mergulho de cabeça no mármore no momento em que este se tornou líquido e enfiou algo na bocarra cheia de dentes do monstro. Algo que tirara da gaveta. O rapaz também sentiu uma forte vertigem e uma pressão diretamente nas têmporas, caindo desmaiado; olhos escancarados e pele branca como cera, igual a outras presas. O efeito do experimento foi instantâneo: o monstro se inflou como um balão gigante de festa de aniversário, formando uma esfera de uns dois metros de diâmetro, ocupando quase toda área vazia da cabana, e em seguida explodiu com um grande estrondo e dilatação do ar. A porta foi arremessada com a explosão, porém nossos heróis não sofreram ferimentos. No lugar de chamas e destroços, a morte da criatura alienígena liberou todas as memórias dos sete jovens, que percorreram o ar como um forte sinal wireless, invisível ao olho humano, até chegar aos seus pontos de origem.
Ao amanhecer, os amigos decidiram esquecer essa experiência sobrenatural. Montez contou sua última história:
− Enfiei um CD-ROM na boca do monstro. No rótulo dizia "Enciclopédia Barsa, completa e atualizada" Imaginei que, assim como informações biológicas, o alienígena também podia absorver dados digitais. Claro que uma enciclopédia inteira engolida de uma vez seria altamente indigesta...
Os colegas poderiam aplaudir a coragem e inteligência do contador de histórias, só que agora a hostilidade reinava entre eles, o que acabou por encerrar a amizade. A explicação é simples: um sinal de rede atinge uma determinada área por igual. E o sinal pode sofrer desvios. Da mesma forma com as lembranças e segredos de nossos amigos:
− Então foi você quem atropelou meu irmão, seu filho da puta! - grasnou Melissa direcionada a Anderson.
− E você agride seu filho a ponto de deixá-lo cheio de hematomas, sua mãe desnaturada! - desabafou Leonardo à Sra. Ramos.
− Não venha dar uma de santinho, Leo, você roubou as respostas daquele exame para tirar uma nota maior que a minha. Agora entendo... - bradou Rafael, exibindo uma lente rachada dos óculos por efeito da queda quando fora atacado pela criatura.
− Olha só quem fala! O nerd dedo-duro que me entregou para o diretor da escola, sendo o culpado da minha suspensão com o Anderson... - choramingou Dayse e quando Charlene se aproximou ela deu um salto pra trás, revoltada - Suma da minha vista, Novaes, foi você quem envenenou meu cachorro!
Sim, a amizade do grupo terminara. Berilo parou de contar histórias para tentar impressionar. Sempre que pensava na horrível experiência, sentia o rosto arder de vergonha. Olhando no espelho, parecia ver as marcas deixadas pelos dedos de Charlene e suas últimas palavras antes daquela bofetada estrepitosa:
− "Você se masturba com minhas fotos na rede, seu PERVERTIDO!"

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