Em agosto de 2014, Charlene Novaes mudou-se com a família para um apartamento no centro da cidade. Dez andares acima do nível do trânsito. O calor era insuportável e a poluição alcançava cada uma das janelas. Até num mês de inverno, o ar condicionado fazia plantão às tardes.
Todo o incômodo de se viver num lugar assim seria facilmente superado pela jovem se não fosse um pequeno problema: não admitiam animais. Com um amor incontrolável pelos felinos, Charlene sentiu uma dor aguda na alma ter que se desfazer de sua família de gatos. Dois machos, duas fêmeas, todos castrados e vacinados. Os pais da moça diziam que eles eram os irmãos que ela não tinha, mas Novaes os tratava como filhos.
Cada um conhecia seu nome e sempre vinha quando chamado. Os machos, um chamava Boris e o outro Toby. As fêmeas eram Teka e Bel. Os nomes davam a ilusão de serem dois casais, um com a inicial B e o outro T. Porém, todos se tratavam como irmãos. Não disputavam a ração nem os recipientes de água. Cada um tinha o seu. Apenas o banheiro, uma caixa de areia de quarenta por trinta centímetros, era compartilhada quando a dor de barriga apertava. Durante o dia, eles se aliviavam no quintal ou no terraço dos vizinhos.
Em um local pequeno e apertado, tudo seria diferente. Violar a regra e levar os quatro bichanos seria impossível. O jeito era dá-los aos parentes, pessoas de confiança que poderiam tratar deles com igual cuidado e carinho. Porém apenas dois deles passaram a outros lares. Toby foi morto por uma mordida no pescoço desferida por um pitbull, pertencente a uma ex-colega de classe chamada Dayse Silva.
Charlene deixou seus piores instintos aflorarem com o ocorrido. Sem remorso, envenenou o cachorro às escondidas, uma verdadeira ninja vingadora. Dos quatro, apenas Teka permaneceu com sua mãe humana. A gatinha persa de pelos cor caramelo era a preferida de Novaes. E a mais tranquila também, o que ajudava muito. Não teria problema em ficar a maior parte do tempo trancada no aposento.
O bichano adaptou-se rapidamente ao novo lar. Não demorou a subir no sofá de três lugares e afofá-lo com as unhas, fazendo uma confortável cama.
A ração e o conteúdo da caixa de areia eram transportados com toda a discrição possível. Nem um tráfico de drogas seria melhor elaborado. Com o tempo e o nascer de uma amizade com os vizinhos, a família Novaes soube que outros inquilinos criavam seus bichos de estimação em segredo. Na maioria dos casos, outros gatos. Os bichanos eram como pessoas levadas ao exílio. Estavam isolados em seu mundo particular.
Entretanto, durante a noite, os gatos são ótimos na arte da camuflagem. Além de saberem o valor do silêncio. Assim, os animais do edifício também fizeram amizade.
Certa noite, o pai de Charlene chegou em casa e disse ter visto Teka no telhado com outro gato.
- Nós vamos acabar nos encrencando se os donos souberem de quem e aquela gata! - rugiu ele, fechando o guarda chuva - Está chovendo hoje, os pelos dela ficarão encharcados! Quero ver o que você vai fazer se ela resolver dormir do seu lado.
- Eu me entendo com a Teka, papai. Não se preocupe.
A chuva caía furiosa na cidade. Pequenos lagos se formavam nas crateras do asfalto. Rios levavam consigo o lixo descartado pelos pedestres inconsequentes. Uma poça de lama escorreu pela calha dos Novais. Uma poça que podia seguir um carro se quisesse, como uma cobra peçonhenta rastejando a procura de uma presa, mais literalmente falando, um hospedeiro. A calha era um perfeito caminho retilíneo sem as imperfeições do asfalto e sem nenhum obstáculo, exceto por um monte de pelos que caminhava também. "Que criatura é essa que lambe o próprio corpo?" Ainda não havia se deparado com aquilo no planeta Terra. Talvez possa ser usada em seu próprio proveito. O jeito é tentar e ver o que acontece.
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Além da fogueira
TerrorBerilo Montez adora contar histórias de terror. Quando vai para um acampamento com seis amigos, vê a chance ideal de fazer o que mais gosta. Mas o que parece um ser alienígena cai na mata e começa a atacar o grupo de Berilo, transformando a diversão...