A porcaria do GPS parou de funcionar de novo. Grande tolice em comprar um equipamento usado de um vendedor desconhecido pela rede.
Anderson Souza parou num semáforo da rua Prudente de Moraes e ficou matutando. Sua vida se resumia num volante a sua frente. O antigo hobby da adolescência se transformara em profissão. Como quem escreve secretamente, seja um diário, romance, crônicas ou poesias, dos quais apenas a família e poucos amigos íntimos tomam conhecimento e leem as obras, um dia pode se tornar um escritor conhecido internacionalmente, um motorista alucinado por velocidade e rachas perigosos à noite pode virar um taxista sério e consciente da lei.
Ainda se recordava plenamente da fatídica noite no início de julho de 2013. Vivia rodeado de colegas com suas namoradas barraqueiras e suas latas de cerveja. Ele guiava um Ford em bom estado e discretamente turbinado. Fazia um ruído igual a uma moto quando acelerado e corria tanto quanto uma. Souza se gabava de ganhar vários rachas nas rodovias menos movimentadas da cidade em plena madrugada, cujo prêmio não era lá grande coisa: um rodízio de pizza pago pelos amigos derrotados, ou uma noite de sexo com alguma garota ligeiramente empolgada com a corrida regada a álcool.
Naquela noite ele ouvia um rock num volume de estourar os tímpanos. Esbravejava junto com o vocalista, mas seu acompanhamento era imperceptível comparado ao poder das caixas de som acopladas no porta-malas. Usava o volante como uma bateria, batendo com os indicadores até ficarem inchados.
Foi no mesmo semáforo, quase as duas da manhã, que ele foi cercado pelos amigos que levavam as aulas de física à sério. Pelo menos em se tratando de experimentar os extremos de velocidade. Rogério Damião era um filhinho de papai que curtia farras noturnas regadas a bebida e mulheres. Willian Chagas era mais caseiro, curtia um bom video-game de Fórmula 1 no conforto de seu quarto, mas levava a adrenalina das telinhas para a vida real. Eles cercaram Anderson com intimações e desafios. Um racha sem testemunhas, apenas para testar a potência dos motores e a coragem dos condudores. Ele precisava decidir antes do sinal se abrir. Uma senhora atravessou a faixa diante deles nesse meio tempo. Ao ouvir o ronco nervoso do motor de Anderson, numa resposta clara de “Desafio aceito”, a mulher deu um salto de susto e resmungou algumas ofensas abafadas pela fúria dos três veículos.
− Quem chegar ao final de rua primeiro ganha! – explicou Rogério, apontando o final do trajeto com uma latinha de Skol vazia na mão.
O semáforo exibiu a tão aguardada cor verde e os corredores pisaram fundo, deixando um rastro de pneus e fumaça. O Ford azul de Souza ficou entre a Ferrari amarela de Rogério e a Mercedes de Willian. O prazer da velocidade é viciante. Chegaram a cem por hora em questão de segundos. Apenas mais um semáforo no meio do trajeto, o obstáculo cruel que pregou uma peça. O autor da peça, um cidadão jovem, não devia ter mais que trinta anos, voltava para casa ligeiramente embriagado. Ninguém o viu antes que fosse tarde demais. Anderson apenas focalizava as luzes do semáforo. “Se ficar amarelo agora eu passo; se começar a frear antes da hora vou perder!” – pensou
Foi inevitável. O pedestre atravassou a faixa no sinal amarelo. Souza estava ganhando, mas por pouco tempo. Num segundo o campo estava livre para a vitória e no outro um cara folgado que veio do nada surge no meio do caminho. Anderson pisou no freio, porém não antes de acertar em cheio o corpo do rapaz. Ele rodopiou no ar como um boneco de pano e caiu na estrada no trecho onde o possante de Damião acabara de passar. Os pneus derraparam; a corrida foi interrompida sem um vencedor. Lado a lado, os corredores entreolharam-se ofegantes. Anderson fez menção de tirar o cinto de segurança quando Rogério o alertou:
− Não tem mais ninguém aqui, cara! Vamos embora enquanto podemos. Os moradores sairão de suas casas a qualquer momento e vão anotar nossas placas.
− E se o sujeito estiver vivo? Vamos omitir o socorro?
Anderson sentiu-se horrível. Primeiro pelo acidente, depois por não prestar ajuda. O pedestre podia estar vivo e realmente estava até a hora em que a ambulância chegou, cerca de quinze minutos depois. Um morador da rua ouviu o barulho e fez a ligação ao observar o corpo estatelado na rua. Alguém deve ter visto três carros chispando do local, mas ninguém anotou as placas.
Um ano depois a polícia não batera a porta de Souza. Talvez ele tivesse escapado ileso pela justiça. Observara no jornal a respeito do atropelamento, a omissão de socorro e o sepultamento da vítima, a notícia detalhada como uma foto do rapaz em vida, um jovem universitário prodigioso com um grande futuro pela frente chamado Ezequiel Ramos.
Contudo, a experiência de se sentir um assassino frio das estradas o regenerou. Largou as mulheres, as corridas e a bebida. Inclusive os amigos Damião e Chagas tiveram seu convite VIP para deixarem sua vida. Somente o prazer de estar sobre quatro rodas o atormentava. Por fim não queria deixar as ruas. Alinhar a sensação de dirigir agora com a intenção de ajudar as pessoas e formar uma renda o levou a profissão de taxista. Fez o curso com toda a dedicação possível, renovou a carteira de motorista, tirou o documento extra necessário além da licença do veículo e quando menos esperou, já transportava pessoas no trânsito caótico de São Paulo.
Parar naquele semáforo trouxe-lhe recordações dos erros da mocidade. Não se entregou a justiça, pois pretendia pagar seu crime com trabalho e uma vida honesta. Transportou desde idosos que reclamam de tudo até mulheres extremamente atraentes e caladas, das quais umas olhadas pelo espelho retrovisor central era imprescindível. Possuía dois números de celulares de operadoras diferentes para contato e distribuía cartões de visita personalizados a todos os passageiros que não o tivessem. O aparelho não parava de tocar. Entre uma viagem e outra, mais dois ou três pedidos. Sua agenda vivia lotada. Precisava estender o expediente até a noite muitas vezes.
Certa vez, numa noite nebulosa e fria, ele trafegava em direção a garagem onde guardaria seu maior objeto de trabalho. As pálpebras pesavam como se sustentassem duas bigornas presas com fios invisíveis. Felizmente a rua estava deserta, exceto por um cidadão impecavelmente vestido de paletó, gravata e camisa de cetim branca como leite. Seu aceno acelerou os batimentos de Anderson como aquele cliente chato que exige registrar uma compra no seu caixa quando a portinhola de passagem do carrinho já está fechada e você já retirou todo o fundo monetário da gaveta. Claro que o cliente não tem culpa, pois o caixa pode estar sendo tanto aberto quanto fechado. Mas a simples pergunta, o simples pedido, a sutil insistência em que você trabalhe além do necessário e além de incontáveis horas extras, faziam o coração disparar abruptamente. É a prova do autocontrole, onde você responde cordialmente que o caixa está sendo fechado e no pensamento envia o cliente ao inferno.
Anderson sentiu-se como o operador de caixa exausto e pensou a mesma coisa. Quem pode dizer que muitas verdades estão inseridas no primeiro pensamento que temos frente a uma situação estressante? Ele parou o táxi e todo atencioso, abaixou o vidro do passageiro e entregou um cartão ao senhor, dizendo que por ora havia terminado o serviço. No entanto, acabara de achar um típico “idoso reclama de tudo” num homem jovem e esbelto. Em nada se comparava aos largadões Rogério e Willian, que só conheciam bermudas, regatas e piercings. Mesmo assim, algo naquele cara o chamou a atenção, como se já o conhecesse. Ignorando parcialmente o cansaço, ele puxou conversa:
− Perdão, o senhor já esteve no meu táxi antes?
− Estou certo que não, colega, ainda não usei esse tipo de transporte.
− Bem, e onde pretende ir? Se estiver no meu trajeto posso quebrar seu galho.
− Galho? Não tenho galhos, nem árvores têm aqui! – respondeu com seriedade.
− Ah, ah, ah, um ricaço com senso de humor! Interessante, mas não respondeu a minha pergunta.
− Quero chegar em frente ao cemitério da cidade.
− O cemitério está no meu caminho. Pode entrar, vou ligar o taxímetro. Vou cobrar um pouco mais pela corrida por causa do horário, tá bem?
Dessa vez foi a vez do passageiro gargalhar:
− Ah, ah, ah, não creio que minha dívida será maior que a sua... – disse ao entrar e se acomodar no banco de trás, passando o cinto por baixo da gravata vermelha listrada diagonalmente de branco.
− O que quer dizer com isso?
− Ah, é que você está cansado e compreendo que um acidente de trânsito nessas circunstâncias é tão comum tanto com quem bebe, principalmente entre os caminhoneiros. Mas não se preocupe, estou disposto a correr o risco.
Meu Deus, que sujeito mais agourento! – pensou o condutor.
O passageiro elegante ficou calado no trajeto, se limitando a olhar a paisagem noturna. O taxista experimentou uma sensação estranha; queria se lembrar de onde vira o sujeito, mas não conseguia. Poderia ser um foragido da justiça que vira em alguma reportagem de televisão. Nesse caso sua vida corria perigo. O calafrio que percorreu sua espinha dizimou todo o sono. Seus olhos, mais arregalados que de corujas, encaravam a estrada deserta. Sua pulsação ultrapassava o tic tac quase inaudível do relógio analógico que comprara no mês passado. Passava da meia noite. Tentou quebrar o gelo perguntando num tom humorado:
− Quer que eu te deixe nos portões principais do cemitério? É um coveiro?
− Não!
A resposta seca e direta o deixou sem graça. Estacionou com toda a cautela em frente aos portões de ferro do local, como se temesse chamar a atenção dos vizinhos. Ou mesmo dos “moradores” do lugar. Desligou o taxímetro.
− São vinte reais! – encarou o passageiro pelo retrovisor central.
− Minha carteira está lá dentro. Quer me acompanhar?
Anderson fitou o cemitério pelo canto do olho. Negou-se a sair do carro. Nem mesmo destravou o cinto. Queria aquele passageiro fora de seu veículo o mais rápido possível, mesmo que tivesse que perder a corrida. O jovem engravatado tirou o cinto e abriu a porta traseira. Quando a bateu, deu um sorriso sugestivo dizendo que voltava em poucos minutos. O taxista engoliu em seco e quando o viu se afastar, uma dose de alívio o tomou.
Então, uma cena aparentemente simples o deixou branco como neve: os portões se abriram sozinhos logo que o passageiro se aproximou. Um guincho metálico arrepiante soou por toda a rua. O jovem desapareceu na escuridão e a passagem foi fechada.
“Tudo bem, ele deve ter acionado o portão com um controle remoto.”
Os minutos pareceram horas. Com os dedos colados no volante, assim como um pintor dedicado não desgruda de seus pinceis, Anderson aguardou, a cabeça projetada para frente, a respiração embaçando o vidro. Imaginou se o cara voltaria sozinho com o dinheiro, ou se voltaria com uma família de zumbis para comer seu cérebro.
Ah, que bobagem! – pensou. Fantasiar o medo o fazia sentir-se melhor. Mas o ruído do vento farfalhando as folhas das árvores ao redor do terreno não ajudava.
Decidiu destravar o cinto. Tornou a olhar o relógio. Vinte minutos de espera. Nesse tempo ele poderia andar por todo o perímetro do cemitério. Era melhor ir embora e rezar para não sonhar com o cara à noite. O sono começava a combatê-lo de novo. Nessa hora os portões se escancararam de novo com um guincho ainda mais alto, porém ninguém saiu.
“Merda, vou embora daqui agora mesmo!”
Então a voz do sujeito o chamou em algum local da escuridão. Ou Anderson fugiria como um cãozinho assustado ou arriscava receber a corrida e saber quem era seu último passageiro e se lembrar onde o vira antes. Seus passos na calçada faziam um ploc vacilante. Trancou o taxi e levou o celular no bolso.
O cemitério era modestamente iluminado pelos postes. Anderson seguiu a trilha comumente usada pelos visitantes durante o dia, sendo guiado pela voz do passageiro. Seu coração acelerava a cada curva, a cada passo. O cidadão aguardava ao lado de uma sepultura vazia. Montes de terra a circundavam. Na cabeceira uma lápide, cuja inscrição não era visível.
− Caramba, estão violando túmulos! – exclamou o taxista, levando a mão à boca.
− Na verdade o corpo que estava aqui será devolvido, Sr Souza.
− Como sabe meu sobrenome? Ah, claro, deve ter visto na minha licença pendurada no táxi.
− Já sabia seu nome antes disso, Anderson. Ainda não me reconheceu?
− Quem é o senhor, afinal?
− O nome Ezequiel Ramos te soa familiar?
Souza levou um tempo para processar a informação. Quando seus lábios começaram a tremer e todos os seus pelos se eriçaram, ele já estava caído no fundo da sepultura, sua pele macilenta e suada se contrastando com o negrume da terra. Seu último passageiro o encarou do alto, sorrindo. Anderson não podia crer que via o fantasma de sua vítima de atropelamento, vinda do além para se vingar, pois ele sentira o toque da pele, os longos dedos do cara o agarrando pelos ombros e o derrubando dentro do buraco. Espíritos não têm matéria.
Foi então que seu pesadelo ficou pior: Ezequiel começou a se decompor; o rosto que ele reconhecera da foto do jornal virou a cabeça de um zumbi, o que restou de pele apodreceu, os olhos viraram dois buracos onde transitavam minhocas e larvas, a arcada dentária foi projetada para frente, revelando dentes amarelados e podres, os cabelos caíram, os dedos viraram finos gravetos e vários buracos se abriram no traje social, agora imundo e fedorendo.
O corpo desconhecido que jazia naquela cova há vários meses caiu sobre Anderson como uma marionete da qual foram soltas as cordas de repente e o taxista ficou imobilizado, sem conseguir gritar e pedir ajuda. Estavam longe de qualquer ouvido humano nas profundezas do cemitério naquela hora da noite. A terra removida do buraco começou a se mexer e a cobrí-lo. Ele não viu mais ninguém, nem mesmo uma pá em movimento, mas poderia jurar que algo o estava enterrando ali, se pudesse compartilhar a experiência no mundo dos vivos. A terra ganhou vida para tirar a dele. Em poucos minutos o buraco estava coberto e impecável, com a lápide do verdadeiro cadáver no lugar. Apenas o caixão fora removido e enterrado ainda mais fundo, mas isso ninguém perceberia até que fosse muito tarde para resgatar o taxista com vida. A terra se umedeceu e borbulhou como água evaporando, em sinal de deleite e comemoração.Fim
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Além da fogueira
HorrorBerilo Montez adora contar histórias de terror. Quando vai para um acampamento com seis amigos, vê a chance ideal de fazer o que mais gosta. Mas o que parece um ser alienígena cai na mata e começa a atacar o grupo de Berilo, transformando a diversão...