Outubro de 2014. Aquela foto a acompanhava a todos os lugares. Fora tirada no início do namoro. Não era como as fotos no smartphone. Era algo mais palpável, mais próximo do real. Como alguém que se nega a trocar um livro impresso por meros e-books.
Dayse Silva ainda podia sentir o toque do beijo de seu namorado nos sonhos. Anderson sumiu sem deixar vestígios. A última evidência de sua presença fora seu carro estacionado em frente a um cemitério. Era um bom taxista, havia tomado juízo. A essa altura poderiam estar casados, talvez esperando o primeiro filho. O destino quis que fosse assim.
A polícia não descartou a hipótese de sequestro. Anderson poderia estar vivo, em algum lugar. Mas se assim fosse, o autor do sequestro já deveria ter entrado em contato. Quanto ele achava que ganharia de resgate? O cidadão era apenas um taxista, sem fortuna alguma escondida.
Mas não era apenas o sumiço do namorado que tirava seu sono. Há pouco tempo a mimada e assassina de cachorros, Charlene Novaes, saltou da janela do último andar do prédio em que vivia e morreu na queda. Apostaram em suicídio, porém há forte evidência de que a vítima fora atacada por gatos. Mais um mistério: como aparecera tantos felinos na casa com intenções homicidas?
Sem mencionar os colegas de estudo Rafael Duarte e Melissa Ramos, que tiveram mortes violentas e estranhas. Tudo tivera início no maldito acampamento em janeiro daquele ano. Ela integrara o grupo de estudantes daquele fatídico e sobrenatural passeio.
Ela sentiu um frio na boca do estômago, um tremor que tomou conta de cada músculo. Sabia que mais cedo ou mais tarde tentariam matá-la. Se pelo menos soubesse quem ou o que estava por trás disso, providenciaria uma proteção. Contudo, sem evidências reais, qual atitude mais sensata tomaria?
Primeiro, nada comentou com os pais que tanto amava. De nada adiantava levantar um temor na família sem nada concreto. Mesmo com todas essas coincidências lamentáveis, somente Dayse sabia que algo ruim estava por vir.
Contudo, naquele quatorze de outubro era o dia de afastar qualquer pensamento negativo. Afinal, era seu dia. Tudo fora preparado com antecedência; os convites enviados há um mês e a encomenda de salgados e doces, incluindo o bolo, ha duas semanas. Por uma questão de economia, o local do evento foi decidido em comum acordo que seria na casa dela. Dayse era mimada, no entanto aceitou que alugar um salão ou uma chácara ia além do orçamento dos pais.
O dia estava ensolarado, mas não abafado. Se fosse uma festa para uma criança, haveria espaço para uma cama elástica ou uma piscina de bolinhas, mas para uma adolescente buscando independência, uma tarde com as amigas no quarto, com uma música de estourar os tímpanos e bebida sem álcool (as amigas dariam um jeito de batizar o refrigerante mais tarde, quando os adultos ficariam distraídos em conversas fúteis na cozinha ou na varanda) e de preferência diet.
Depois do almoço, os primeiros convidados não tardariam a chegar. Carla já arrumava a mesa da sala de jantar e Oswaldo trazia o bolo de dois andares com chocolate e coco ralado na cobertura. Oswaldo e Carla Silva eram pais atenciosos.
O quintal tinha espaço de sobra desde que o cachorro da familia fora envenenado por uma jovem vingativa. Um pit bull amoroso que só queria brincar. Uma mordidinha no pescoço do gatinho; luto na familia Novaes. O pobre cão não sabia controlar a própria força. Morrer envenenado era um castigo hediondo. Dayse pensou em levar o caso para as autoridades quando descobriu. Mas e as provas? Sua única certeza era uma lembrança clara de Charlene praticando o crime, a qual pairou em sua mente no início do ano, naquele infernal acampamento.
Max, o nome do cachorro, era um membro da casa e, como tal, insubstituível. Os latidos, as lambidas de carinho, os passeios no parque, tudo fazia falta. Talvez mais do que Anderson.
Enquanto se maquiava para a grande festa, observando cada detalhe no espelho, a janela estava aberta e por ela sorrateiramente entrou um gato persa de pelagem amarela. Se fosse descoberto, seria expulso a vassouradas dali. Precisava arrumar urgente uma outra camuflagem. A boa e infalível carapaça humana. O disfarce usado até então fora bem útil. Digamos que informações interessantes foram coletadas nas últimas semanas. Sua próxima vítima era um alvo frágil. Se quisesse terminaria o serviço ali mesmo, mas era mais prazeroso o sofrimento, o medo e a exploração das fraquezas do inimigo. No caso de Dayse, perder os familiares.
A adolescente que completava seus quinze anos tentava decidir a cor do batom quando sentiu um calafrio e alguma coisa pegajosa e fria subindo por suas pernas até a altura dos joelhos. Tudo ao seu redor se apagou, restando somente o espelho diante de si. Sem ao menos conseguir piscar, ela passou a distinguir vultos ao seu redor e o reflexo do quarto deu lugar a um ambiente bem conhecido: a sala de jantar.
Na visão ela estava entre seus pais, visualizando aquele bolo de dois andares. Até então ela não sabia o formato nem as cores do bolo. Ela viu algumas amigas próximas, as roupas que usavam. Verônica, por exemplo, trajava um vestido vermelho até os tornozelos que Dayse nunca havia visto. Mateus, um colega de classe, ostentava uma camisa nova, com a etiqueta ainda presa ao colarinho. Carla vestia um fino vestido de seda azul que estreava naquela ocasião e o pai uma camisa xadrez já usada em outras ocasiões, como o aniversário de casamento do casal três meses antes.
Todos passaram a bater palmas, cantando alegremente. Era hora do parabéns. A aniversariante enrubesceu. Um sorriso forçado delineou seus lábios sem cor. Cravou os olhos no bolo; duas velas estelares cintilavam e soltavam faíscas. Ela não ouvia as vozes, mas o movimento das bocas bravejando a plenos pulmões lhe conferiu o seu mais terrível pesadelo no momento do rá-tim-bum: seus pais contorceram os rostos de dor, agarraram o tórax no lado do coração como se fossem arrancar um pedaço e desmoronaram, saindo do campo de visão da filha através do espelho. Ambos tiveram enfarto fulminante, talvez pela emoção, ou outro motivo obscuro.
A visão desapareceu de repente. O reflexo de Dayse gritou de puro terror. A mãe interrompeu seus afazeres e veio acudí-la. Achou que seu tesouro mais precioso havia se assustado com um gato que entrara pela janela e o pôs para fora.
Tudo bem, agora era apenas uma gata comum. O que a trouxera ali já escorrera pelo rodapé atrás da penteadeira até o cômodo mais próximo, enquanto Carla expulsava o bichano e a filha continuava a gritar.
Como a adolescente ia contar sobre a terrível premonição da morte dos pais. Não queria crer que fosse mesmo acontecer, mas algo a amedrontava mais: a mãe usava aquele mesmo vestido de seda azul. Os detalhes da visão começavam a se encaixar. Melhor deixar o susto por conta do gato que entrara sem convite.
Chegou o horário da festa; os convidados surgiram de braços abertos para um cumprimento afetuoso seguido de beijinhos. Verônica nem teve tempo para formalidades. Foi arrastada ao quarto da aniversariante, desovando o pacote com um presente sobre o primeiro móvel que cruzou seu caminho.
—Se eu te contar que já sabia que viria com esse vestido vermelho, acreditaria em mim?
Verônica perdeu a voz. Encarou a expressão perplexa da amiga como se não a conhecesse. Fazer quinze anos deve mexer muito com os hormônios de uma jovem. Para não dizer os neurônios.
—Sei que pareço louca, mas ainda vou ficar se não desabafar com alguém. Tive uma premonição com a morte dos meus pais, bem na hora do parabéns.
Dayse explicou sem muitos detalhes o derradeiro fim da visão. Tomou o cuidado de cobrir o espelho temendo outra aparição assustadora.
—Você cochilou enquanto se maquiava e teve um pesadelo. Só isso! — a amiga recuperou o tom da pele e tentou demonstrar segurança no que falava. Mas não foi nem um pouco convincente.
—Vamos para a sala. Mateus talvez tenha chegado. Vou lhe dizer como é a camisa que ele estará usando.
Mais uma vez, a aniversariante vidente acertou todos os detalhes da camisa antes do amigo chegar, exceto que não havia nenhuma etiqueta presa ao colarinho. Seria muita distração da parte do rapaz. Verônica tentou duvidar da nova previsão, apesar de achar a amiga mimada incapaz de combinar uma brincadeira dessas com Mateus.
As horas passavam. O momento mais aguardado pelos convidados era o mais adiado pela jovem Silva. Por vezes almejava se distrair com as amigas do colégio, se embriagar com refrigerantes adulterados, mas a vigilância da mãe era implacável. A música alta foi liberada até as vinte e duas horas. Mas nem as notas mais agudas podiam atenuar o medo da jovem.
Quando sugeriram cantar o "parabéns", ela adiou, com uma nota de temor. Verônica a olhou de soslaio, disfarçando uma tosse seca. Quando adiou pela segunda vez, alguns convidados estavam terrivelmente impacientes. A essa altura diversos brigadeiros e beijinhos haviam desaparecido e parte da cobertura do bolo fora vandalizada. Será que o fato dela adiar um momento tenso teria alterado detalhes da visão? Bem, ela não podia jurar que o bolo que vira através do espelho do quarto estivesse inteiro. Além do mais, ela se concentrara muito mais na presença dos pais do que nos pormenores do bolo.
E por falar nos pais, onde o Sr. Oswaldo estaria? Ele havia trazido o bolo conforme dissera e em seguida foi tomar um banho para a festa. Então, após se vestir, o Sr. Silva simplesmente saiu mais uma vez, sem avisar a ninguém. Porém ele teria que chegar na hora do parabéns. Carla ligou várias vezes, porém ele não atendia. Pressionada pelos convidados que só compareciam a aniversários por obrigação, ela sugeriu cantar e cortar logo o bolo. Só que a filha recusou. Duas vezes. "Claro, ela se recusa a passar o momento mais importante da festa sem o pai!" - deduziu a Sra Silva.
Por volta das onze horas, era impossível adiar por mais tempo. Dayse fazia um prece na privacidade do banheiro quando o toque tranquilizador da mãe soou na porta:
—Vamos pra sala de jantar, querida, seu pai já voltou. Reparei que não comeu nada. Tá passando bem?
Dayse abriu a porta e abraçou a mãe com força, soluçando:
—Estou com muito medo, mamãe. Tive uma espécie de visão em que a senhora e papai morrem depois de cantarem parabéns. Não quero que se realize.
—Quando foi isso, amor?
-Foi enquanto eu me maquiava em frente ao espelho da penteadeira.
Sem interromper o abraço, a mãe superprotetora acariciou os cabelos desgrenhados da adolescente, em razão ao seu estado de desespero:
—Acalme-se, meu bem. Você deve ter cochilado enquanto se maquiava e teve um pesadelo. Isso é ansiedade. Vamos, todos estão esperando.
Dayse viu que seria inútil argumentar a coincidência das roupas ou a aparência do bolo. Tinha que enfrentar a dura realidade. Talvez tudo fosse uma travessura de sua mente e nada acontecesse. Só que ela amava demais os pais para aceitar essa possibilidade.
Oswaldo Silva a esperava do outro lado da mesa da sala, na mesma posição que se achava na visão. Mau sinal. Burlando detalhes irrelevantes da premonição no intuito de conseguir um efeito maior, ela pediu aos pais que trocassem de lugar. Os convidados ficaram entediados com a mudança. Menos brigadeiros e beijinhos nas bandejas. Verônica empalideceu. Mateus, de braços cruzados, observava as ações do homem da casa com desconfiança. Aonde ele teria ido após o banho, sendo que já trouxera o bolo antes? Não que isso fosse de sua conta, acontece que ele já conhecia o pai de Dayse há um tempo suficiente para perceber que o homem não agia naturalmente.
Chegou a hora do parabéns. Sem saída, a aniversariante precisava encarar o inevitável. Ou ser a protagonista da primeira festa em que se assoprava velinhas sem o tradicional "ra-tim-bum". Carla deu-lhe um sorriso de incentivo. Oswaldo acendeu as duas velas em formato dos números 1 e 5 no centro do bolo e as quatro em formato de espetos nas extremidades. Pediu que apagassem a luz do recinto.
Agora o brilho das velas iluminava parcialmente a mesa das guloseimas. O restante do cômodo ficou na penumbra. Vultos batiam palmas, cantando. O pique pique pique e hora hora hora foi animadíssimo. Pulinhos dos jovens faziam ritmo com as palmas. Então, no momento do rá-tim-bum, o coração de Dayse parou. O tempo congelou como se cada segundo durasse uma hora. Esperava ouvir seu nome se contrair num grito de dor dos pais, que cairiam no meio dos convidados como as balas do interior de um balão suspenso no teto, quando estourado.
Mas nada aconteceu.
A música acabou e a aniversariante não sabia se apagara as velas com um sopro ou com um suspiro de alívio vindo do fundo dos pulmões. Carla sorriu para a filha. O sorriso dizia que não havia motivo para pânico.
Então o pesadelo real aconteceu. Oswaldo deu um urro de dor, agarrou o peito na região cardíaca e caiu em frente a mesa. O baque estremeceu as vidraças da casa. Todos os convidados se curvaram ao redor do possível enfartado, abrindo-lhe as vestes tentando reanimá-lo. Ele procurou o olhar da filha; esta derramava um rio de lágrimas:
—Dayse, querida, vá até o nosso quarto. Procure meu celular. RÁPIDO!
Mateus já discava a uma ambulância do próprio aparelho, mesmo assim a filha não desobedeceu. Saiu como um tiro da vista de todos.
Segundos após chegar ao destino, revirando prateleiras e gavetas, algo estranho aconteceu: silêncio.
Cadê as vozes exaltadas dos seus parentes e amigos? Não se calariam assim mesmo se o pior ocorresse. A não ser...
Som de passos...
Uma única pessoa vinha ao seu encontro. Provavelmente sua mãe, com o semblante carregado de dor. Dayse estacou ao lado da cama dos pais, de frente à porta aberta. Desistiu de sua busca. O quarto era bem iluminado, mas o corredor lá fora era banhado pela penumbra. Quando a sombra de uma silhueta feminina se esgueirou para o interior do cômodo, ela podia jurar que Carla entraria trazendo a pior notícia que iria ouvir antes de enlouquecer. Ou ainda pior. Verônica estaria ali, anunciando que a sra. Silva não suportou perder o marido, que acabou indo se juntar com ele no além, concretizando a premonição da filha.
Porém, quem ou o quê entrou naquele quarto superou qualquer expectativa do terror que Dayse sequer imaginaria. O corpo da figura invadiu seu campo de visão, saindo da penumbra. Trazia no rosto os diversos arranhões e cortes profundos deixados pelos felinos. No entanto, eram as roupas do pai que usava, largas em seu corpo de miss. Ela fitou a ex amiga com um sorriso desdenhoso, o típico ser do inferno que voltara com o único intento de atormentá-la:
—Qual o problema, amiga? Devia se sentir horrível por não me convidar pra sua festa. Ainda tá ressentida por eu ter abreviado a vida do seu cachorrinho?
Dayse gritou; um berro retumbante que estremeceu a janela do quarto. Ninguém veio acudí-la. A casa parecia deserta:
—Não adianta gritar, querida. Eu tomei providências para não sermos interrompidas.
A mão arranhada de Charlene fechou a porta, trancando-a por dentro. A outra mão segurava duas hastes de madeira. A primeira vista, era o que parecia. Dayse recuou até sua coluna se chocar na parede oposta. A baixa temperatura do cimento lhe provocou um arrepio ainda mais duradouro. A moça zumbi caminhou em sua direção, cambaleando como uma morta que apagara por coma alcoólico e apontou-lhe as hastes com as pontas queimadas. Vistas agora a poucos centímetros, a aniversariante que se borrava de medo viu que eram as velas do bolo.
—Feliz aniversário, Dayse. —disse a intrusa.
E encravou as velas nos olhos da outra.
A ambulância que Mateus chamara veio minutos depois. Os socorristas identificaram no ar a presença de clorofórmio. Todos na sala estavam adormecidos. O primeiro a acordar foi Oswaldo, que disse não se lembrar de nada desde que chegara em casa com o bolo e fora tomar banho.
Após os primeiros socorros e umas horas em observação, todos foram liberados. Exceto a aniversariante, é claro.
Não teria como receber alta sendo encontrada com duas velas espetadas na cabeça, entrando pelos globos oculares e saindo pela nuca.
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Além da fogueira
HorrorBerilo Montez adora contar histórias de terror. Quando vai para um acampamento com seis amigos, vê a chance ideal de fazer o que mais gosta. Mas o que parece um ser alienígena cai na mata e começa a atacar o grupo de Berilo, transformando a diversão...